ENTREVISTA

João Derly: “Dificuldades, inúmeras… Começando pelas condições financeiras para continuar no esporte. Passava por baixo da roleta porque não tinha dinheiro para a passagem. Fazia rifa, vendia pizza para poder viajar.”

Por Clara Jardim

A história do gaúcho João Derly pode ser organizada por diversos marcos, começando pela conquista do título mundial de judô, em 2005, na cidade do Cairo. No ano seguinte, foi a vez do judoca criado no Morro Santana ser campeão do Grand Slam de Paris e, em 2007, tornou-se bicampeão mundial no Rio de Janeiro, arrebatando, também, o ouro nos Jogos Pan-Americanos. Depois de dar adeus aos campeonatos, dedicou-se à política, elegendo-se vereador e deputado federal, além de ter atuado como secretário do Esporte e Lazer do Rio Grande do Sul. Mas, para além dos pódios e das urnas, há um terceiro ângulo do seu trabalho que merece destaque: como professor, Derly tem percorrido academias e escolas de artes marciais há anos, buscando transmitir o seu conhecimento ao maior número de alunos possível. E, dos tatames para a vida, ele compartilha com a Uma Revista o seu mindset sobre aspectos-chave da performance como atleta, político e mestre.

Fotos: Divulgação

O que não pode faltar em um seminário de Derly?

“Sempre tento contar sobre a minha origem, de onde eu saí e como foi a caminhada. Por indicação médica, em 1988, por causa da asma e da hiperatividade, comecei a praticar judô em uma escola estadual. Tudo convergiu para que eu conhecesse esse esporte maravilhoso, que me deu tantos valores e acabou se tornando um meio de vida, no qual conheci amigos e construí uma família.

Obstáculos

“Dificuldades, inúmeras… Começando pelas condições financeiras para continuar no esporte. Passava por baixo da roleta porque não tinha dinheiro para a passagem. Fazia rifa, vendia pizza para poder viajar. E não me arrependo de nada. Tudo foi muito produtivo para forjar o homem no qual eu me tornei.”

Repetições e renúncias

“A repetição no esporte é importantíssima para buscarmos a perfeição, pois nos faz não precisar pensar no movimento; o corpo já age naturalmente. E quase tudo o que a gente aprende no esporte dá para aplicar na vida. Por exemplo, as renúncias: você precisa deixar muitas coisas de lado, desde a alimentação até o horário de dormir. Quando surgiu a internet discada, era muito caro. Só depois da meia-noite para entrar, mas eu não podia ficar acordado para conversar com os colegas. Tinha um objetivo.”

Hiperatividade

“O judô canalizou perfeitamente a minha hiperatividade. Gostava tanto que, se estivesse com o cotovelo machucado, ia ao treino para fazer tudo o que desse para fazer sem usar o braço. Entrava no treino dos mais velhos, chegava antes, saída depois… Ia me metendo!”

Primeira competição

“A minha primeira competição foi na Sogipa. Venci todas as lutas por ippon em cinco segundos. Na minha segunda competição, perdi a primeira. E isso já foi fortalecendo a minha cabeça para eu não deixar a vitória subir à cabeça. Porque, muitas vezes, as vitórias mascaram as coisas. Precisamos estar sempre atentos e ver no que podemos melhorar, mesmo nas vitórias. E, quando eu perdia, no dia seguinte já queria treinar. Ou naquele mesmo dia!

Competitividade

“Sempre fui muito competitivo. Se me dissessem que ninguém conseguia pular de um lugar para o outro, eu queria tentar. Isso é bom para a competição porque você consegue lidar com os desafios. E eu tentava sempre me desafiar.”

Métodos para vencer nas competições

“Eu tinha métodos que nem sabia que eram métodos. Por exemplo, no treinamento, sempre tentava treinar como se fosse uma competição. Derrubaria mil vezes se pudesse. Colocava a meta de fazer seis ippons em cada treino, por exemplo. Também, sempre visualizei as competições. Imaginava o ginásio, o barulho, a torcida, o friozinho na barriga, o olho no olho. Quando entrava lá, já tinha vivido aquilo antes.”

Preparação mental

“Quanto à parte física, quase todo mundo vai estar muito bem preparado. O grande diferencial é a parte mental, e é onde grandes atletas acabam se perdendo. Gente muita talentosa perde para a cabeça nas competições. Falta de confiança e, às vezes, devido às próprias vivências. Uma família que cobra muito ou que deposita esperança demais pode prejudicar.”

Autoconfiante desde criança

“Eu era meio maluquinho. Tinha que pegar dois ônibus para ir da escola à Sogipa. Por causa da troca de ônibus, acabava chegando atrasado. O professor Kiko me botava no chão, me imobilizava e deixava sem ar. No dia seguinte, eu voltava. E ele fazia a mesma coisa. Mas eu sempre pensava: ‘Hoje, ele não vai me pegar’. Só que eu era uma criança! E eu achava que eu ia entrar no tatame e vencer o professor (risos)!”

Periferia

“O esporte é muito importante porque, na periferia, a gente vive um ciclo de violência. Há crianças que crescem em um meio de derrota, não veem o horizonte. Exemplos: pais que são assassinados, usuários de drogas ou que não concluíram o Ensino Médio. E as crianças acabam perdendo a vida para a violência. O esporte entra lá na raiz, dando um novo momento, despertando sonhos de um futuro melhor ou de um futuro diferente do que a pessoa achava ser o melhor para ela. Mesmo que não vá para o alto rendimento, ela terá os valores do esporte para buscar um diploma e um futuro.”

Transição para a política

“Esta foi uma das transições mais difíceis que enfrentei. Porque, quando você está no esporte, todos gostam de você – talvez, algum adversário não goste (risos). Mas, quando você escolhe um partido, já existem pessoas que te odeiam; a palavra é forte, mas começam a odiar você por causa de uma sigla partidária. Então, eu tinha muito medo de que a história que construí com muito sacrifício e dificuldades no esporte fosse manchada por causa da política. Mas eu tinha a oportunidade de entrar no universo político e colocar o esporte em pauta, na ordem do dia. E o esporte não se resume a uma medalha; estamos falando de saúde mental e física, transporte, vestuário, material esportivo, a limpeza de um ginásio ou de um estádio, o setor de serviços (quem vende a água e o açaí). Você mexe com toda a cadeia produtiva.”

Conquistas para o universo esportivo

Conseguimos no PPA, que é o plano plurianual do município, a gratuidade das passagens para crianças irem de casa ou da escola para um local onde possam fazer a prática esportiva orientada. Cerca de 7 mil crianças serão beneficiadas. E foi muito especial, porque eu vivi isso na pele. Passava por baixo da roleta do ônibus por não ter dinheiro para pagar a passagem. Também, prorroguei a Lei de Incentivo; agora, foi aprovada para mais uma prorrogação, até 2027. E estamos aguardando a sanção do presidente sobre o aumento da alíquota, o que é uma grande vitória. Quase um bilhão de investimento. Na prática, isso significa mais projetos sociais esportivos, mais projetos de rendimento e de alto rendimento; materiais, oportunidades e viagens. É dinheiro na veia do universo esportivo. Muito mais oportunidades para muito mais gente. Com este aumento, o esporte vai bombar!

Ser professor

“Eu amo ensinar. Amo poder compartilhar aquilo que eu aprendi e que costumava fazer. Isso me realiza, essa é a verdade. Fico muito feliz quando compartilho algo e alguém me manda um vídeo praticando. A sensação é a de uma vitória. É muito prazeroso dividir a informação. No passado, era mais difícil, mas sempre fui muito observador. Chegava em uma competição e ficava observando os melhores; como repetiam os golpes e como era o treinamento deles. Observava o que os europeus estavam fazendo. E trazia essa informação para cá, pois eu tive a oportunidade de viajar desde cedo. Então, quero que, na minha cidade, por exemplo, os meus amigos e outras pessoas que não conheço tenham a oportunidade de afiar um pouco mais a sua luta. Seja no judô ou no jiu jitsu. É uma alegria. E você acaba conhecendo muita gente legal.”

Generosidade ao ensinar

“Quem gosta de ensinar, gosta de ver o aluno crescer e amadurecer, seja na área que for. Não são todas as pessoas que têm este sentimento; é pessoal. Também há pessoas que têm conteúdo, mas que não sabem transmitir de maneira assimilável, e vai de cada pessoa. Eu gosto de ensinar de um jeito descontraído.”


“Tive uma base familiar muito boa, com muitos valores. E sempre foi essencial ter a fé nessa caminhada. Tenho três palavras que sempre foram importantes para mim: fé, esperança e perseverança. A fé é a esperança em Deus ao seu lado nos momentos de fraqueza e de dificuldades. Nos momentos em que você está mal e tem aquele socorro, depositando tudo em Deus. Daí, vem a perseverança, que é a minha parte. Dedicar-se, estudar, fazer, treinar. Aquilo que nós temos de fazer. Eu sou um sonhador, mas não vivo no mundo dos sonhos. Eu corro atrás. E, para mim, ter Deus ao meu lado é tudo.”