Entrevista com o cardiologista clínico e do esporte Silvio Póvoa, que integra o corpo clínico dos hospitais Albert Einstein e São Luiz – Rede D’Or e do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. Formado pela Universidade Federal de Uberlândia, ele também atua na Clínica Allez, em São Paulo.
Uma Revista: Há muita gente que cai na tentação de considerar tudo mérito em saúde a partir de um julgamento bastante raso, que é influenciado, principalmente, por perfis em redes sociais. Mas esse julgamento se resume a uma verdadeira meritocracia da sorte, não? O senhor afirma que nem tudo é mérito na saúde; que, na medicina, existe o acaso, a aleatoriedade a genética desfavorecida, entre outros fatores. Mesmo a condição psicossocial de cada indivíduo! Ou seja, quem apresenta problemas graves de saúde nem sempre tem maus hábitos. Muitas vezes, pode ser praticante de atividade física e cultivar uma alimentação saudável. Do mesmo modo, há quem adoeça, não por falta de vontade e disciplina quanto à sua própria saúde, mas por carecer de um contexto (fisiológico, psicológico etc.) que permita uma saúde melhor. O senhor poderia falar um pouco mais sobre isso? O que precisamos entender, enquanto sociedade, sobre a falácia da meritocracia em saúde?
Dr. Silvio Póvoa: Essa pergunta é muito pertinente porque ela engloba o que realmente é saúde. Eventos em saúde vão acontecer com todos nós. O próprio tempo é um fator de risco não modificável para que aconteçam. Por outro lado, existem as coisas as quais somos capazes de manipular, com ressalvas, e as coisas que fogem do nosso alcance de maneira direta. Podemos, por exemplo, ter uma atenção maior à dieta, ao exercício e ao sono. Mas conversar sobre isso, por vezes, é também conversar sobre a condição socioeconômica, psicológica, familiar e pessoal de uma pessoa. Será que a capacidade de uma pessoa de fazer exercício quando acorda às 4h30 da manhã para pegar o transporte e ir a um trabalho com demanda física é a mesma de uma pessoa que acorda às 7h e tem um personal trainer? Isso se torna importante quando colocamos o tema em saúde. Ele envolve o indivíduo – afinal, ele é o responsável final para fazer as coisas certas, mas, também, todo o ambiente. Por isso o sistema de saúde, o transporte e o trabalho acabam envolvidos nisso. Além disso, genética importa, e importa muito. Alguns fatores de risco para doenças e algumas doenças possuem causas parcial ou totalmente genéticas. Algumas, com o que temos de tecnologia, a medicina consegue correr atrás, outras não.
Uma Revista: A questão da primeira pergunta se estende, também, às pessoas que apresentam obesidade. Elas podem ser exaustivamente julgadas como preguiçosas, pouco determinadas e sem disciplina. Nem sempre o Instagram ajuda na compreensão de que a obesidade é uma doença para muita gente, e não um estilo de vida. O senhor esclarece isso em posts bastante didáticos, inclusive, sobre tratamentos para a obesidade e a diferença que precisa ser observada entre eles e o processo de emagrecimento de quem não tem obesidade – mas que deseja perder peso via medicamento. Orientar uma pessoa com obesidade a simplesmente ser mais dedicada quanto a uma rotina de exercícios físicos, por exemplo, pode não ser o melhor jeito de ajudá-la, correto?
Dr. Silvio Póvoa: Eu vejo que, realmente, muitas vezes, o paciente com obesidade ouviu uma sinfonia do óbvio de pessoas as quais sequer sabiam o mínimo sobre obesidade a vida inteira. Parece que todo mundo tem uma solução pronta, “é só comer menos e se exercitar mais”. O problema é mais complexo, mas é simplista para pessoas que preferem se achar superiores, julgar o paciente que tem obesidade como pessoas que carecem daquilo que elas, donas do mérito, possuem. Obesidade é uma doença muito complexa. Envolve sinalizações de tecido adiposo (a gordura), músculos, ossos, sistema nervoso central, trato gastrointestinal. Há uma imensidão de vias na fisiopatologia da doença, e o argumento simplista do “basta comer menos e se exercita mais” ainda persiste. Hoje, entendemos que o paciente com obesidade não tem obesidade porque come mais, mas come mais porque tem obesidade. A doença obesidade é que puxa o aumento da fome, por exemplo. E não é a índole ou a força de vontade ou o mérito do paciente com obesidade que gera isso. Quando conseguimos entender esse processo, conseguimos entender o paciente que tem obesidade. Aí, sim, a gente consegue começar a atuar com terapia eficaz, do ponto de vista farmacológico e habitual.
Uma Revista: Em um post, o senhor fala que a estética e a saúde podem conversar muito bem, mas que, quando (ou se) elas se separarem, devemos ficar com a saúde. Qual o risco de medicamentos tais quais o Ozempic serem usados sem indicação, por exemplo?
Dr. Silvio Póvoa: A Semaglutida, presente no Ozempic e no Wegovy, é um medicamento seguro, validado e muito estudado. Talvez seja uma das moléculas mais estudadas dos últimos anos. Quando bem indicada, não só ajuda no tratamento do diabetes e da obesidade como reduz o risco desses pacientes terem doenças como infarto, AVC (Acidente Vascular Cerebral) e mortalidade. Mas, como tudo na medicina, precisa de indicação médica. O medicamento foi estudado para tratar obesidade e diabetes, não necessariamente para uma pessoa que não tem essas condições perder 2kg para o verão. A preocupação não é com o uso do medicamento em si, mas, sim, com o uso errôneo, com a utilização de doses baseadas no que um amigo sugeriu ou no que o famoso do Instagram sugeriu. Quando utilizada de forma inadequada, pode gerar repercussões como náuseas, vômitos, diarreia e obstipação. Não é infrequente vermos, na prática clínica, pessoas tomando o medicamento por conta própria, dizendo que não lidaram bem com o medicamento e, no fim das contas, elas simplesmente estavam utilizando de forma inadequada.
Uma Revista: Outra reflexão que o senhor traz para os seguidores é que não está errado usar medicamento para tratar qualquer condição. O que está errado é viver com fator de risco para doenças graves que são potencialmente tratadas. Mas, hoje, mais do que nunca, nós nos deparamos com uma rede social que virou um mercado a céu aberto. Há quem venda qualquer sensacionalismo para fazer dinheiro, e isso vale para a área da saúde. Não é incomum que médicos que jamais fizeram uma residência estejam mirando se consolidar como influenciadores digitais na área da saúde às custas de discursos que já estão ficando saturados. Eles, muitas vezes, oferecem cursos online para leigos e fazem anúncio de medicamentos pelos quais receberão participação nos lucros, além de manterem uma relação nebulosa com farmácias de manipulação. Isso quando não oferecem cursos para os próprios colegas de profissão aprenderem a vender planos de consultas high ticket.
Recentemente, uma médica endocrinologista que também atua como professora universitária postou o que ouviu de um aluno: “Residência é para quem não se garante no Instagram”.
O resultado disso está em histórias tristes. A modelo Caroline Ribeiro abriu a sua experiência para o público. Depois de observar problemas na sua saúde, ela buscou ajuda e foi inicialmente tratada por uma profissional que insistia: o seu mal-estar podia ser resolvido com regulação hormonal. E o curioso é que a profissional não era endocrinologista. Após o investimento financeiro e emocional naquele tratamento, Caroline veio a descobrir a sua verdadeira condição crônica e autoimune, a esclerose múltipla. E essas histórias tristes, de um sofrimento psicológico desnecessário e muito dinheiro perdido, também estão na cardiologia, não estão? Por que tantas pessoas estão infartando?
Dr. Silvio Póvoa: Atualmente, temos um problema na medicina que é a criação de pseudoespecialidades. Alguns médicos atuam como especialistas, criticam especialistas e ludibriam o público, trazendo soluções milagrosas. Eu não vejo que todo médico deve ser especialista. Conheço diversos generalistas extremamente competentes, bem formados, estudiosos e honestos. Mas acho que, para se posicionar como um, é pertinente que realmente seja treinado como um. O que vemos, hoje, na cardiologia é que não só lutamos contra os fatores de risco, como a desinformação ao redor deles. Infelizmente, há gente na internet dizendo que “água com sal trata hipertensão”; isso é absurdo. Como o discurso é tentador, vemos pacientes abandonando seus tratamentos e caindo no golpe. Fatores de risco cardiovasculares ainda são subdiagnosticados e subtratados. Diabetes, hipertensão arterial sistêmica (pressão alta), dislipidemias (colesterol alto, triglicérides altos), diabetes, tabagismo, sedentarismo (…) são muito prevalentes e ainda pouco tratados. Como são frequentemente assintomáticos, muitos pacientes se expoem por anos e décadas a esses fatores de risco. O infarto, o AVC (Acidente Vascular Cerebral), a hemodiálise ou a insuficiência cardíaca são o último capítulo dessa história. Precisamos reconhecer essas entidades, acolher o paciente que as tem, tratá-las e acompanhar. Um estudo de mais de 20 anos chamado INTERHEART mostrou que conseguiremos reduzir 90% dos infartos se cuidarmos impecavelmente de: colesterol alto, hipertensão, diabetes, obesidade, sedentarismo, pouco consumo de frutas e vegetais, questões psicossociais e consumo de álcool moderado e alto. É hora de sermos mais incisivos nisso, visto que a maioria desses tratamentos não são complexos do ponto de vista farmacológico, mas exigem orientação, tratamento e seguimento contínuo.
Uma Revista: Depois de ter assistido ao filme Conclave, o senhor destaca uma frase do protagonista: “Existe um pecado que passei a temer acima de todos os outros, a certeza”. Então, transferindo para a medicina, o senhor fala da importância de se ter dúvidas e exercitar a humildade, ouvindo o paciente quanto aos seus sintomas, acompanhando-o de maneira mais personalizada, sem receitas mágicas ou interpretações genéricas. Aprofundando, qual é o papel da escuta ativa em um consultório médico? Parece algo tão simples, mas que se perdeu…
Dr. Silvio Póvoa: É importantíssimo. Talvez, e reforço o talvez, o médico conheça mais medicina do que o paciente. Mas o paciente certamente se conhece mais do que o médico, e o que seria medicina se não a tentativa de unir as duas coisas? Infelizmente, por muitas vezes, temos um sistema de saúde de produção em massa, de consultas de 15 minutos, tanto em convênios como na rede pública. Isso pode até funcionar em um ou outro caso, mas é impossível conhecer realmente em 15 minutos. Propor o tratamento para José, com hipertensão de 150×100 mmHg é diferente do tratamento para João, com os mesmos 150×100 mmHg. Rotina, comorbidades, valores, medicamentos já em uso, idade, percepções de tratamentos prévios (…), tudo isso conta e importa. A questão, muitas vezes, não é tratar a hipertensão do José, mas tratar do José, que tem hipertensão.
