ENTREVISTA

Fátima Mazzoleni lança primeiro romance, ao lado de Leticia Wierzchowski, pela Editora Bá, e faz justiça à bisavó em ficção a partir de documentos históricos da família

Por Clara Jardim

Nesta quinta-feira (21/08), a premiada artista plástica gaúcha Fátima Mazzoleni lança seu primeiro romance, Marie e o Nobre Anônimo, ao lado da escritora e roteirista Leticia Wierzchowski, pela Editora Bá, da publisher Mariana Bertolucci. O evento acontece no Salão do Marquês, na Associação Leopoldina Juvenil, das 18h às 22h, e celebra a mulher que foi a bisavó de Fátima, reconstruída na ficção a partir de documentos históricos da família. A obra é resultado de quatro anos de trabalho, incentivada pela orientação de Leticia e de Maria do Socorro Pereira de Assis, doutora em teoria literária, na oficina de narrativa longa, Cápsula. Confira mais informações na entrevista com as quatro.

Uma Revista: Fátima, como foi o processo de construir uma narrativa que preenche os vácuos da linha do tempo da vida de Marie, sua bisavó?

Fátima Mazzoleni: Confesso que foi uma experiência marcante a minha estreia como escritora, abordando e narrando um fato considerado tabu nas famílias daquela época, século XIX, e que, de certa maneira, persevera nos dias atuais, não na mesma proporção, mas que, infelizmente, continuam a escancarar os noticiários. Não foi uma tarefa fácil gestar esse livro. Foram quatro anos de trabalho, incentivados pela minha orientadora, a escritora e roteirista, Leticia Wierzchowski, e, pela doutora em Teoria Literária, Maria do Socorro Pereira de Assis, duas ícones da nossa literatura. A ferramenta utilizada na elaboração da narrativa foi o realismo fantástico, construído através de documentos pesquisados e resgatados in loco, agregados a temperos de muita magia. Esse romance foi uma forma de fazer justiça, através das palavras, à uma mulher discriminada e, ao mesmo tempo, conviver com a minha bisavó, dar a vida que lhe foi negada, ao trilhar os seus passos nos caminhos da minha imaginação.

Uma Revista: Professora Socorro, você acompanhou a Fátima, ao lado de Leticia, na construção desse realismo fantástico ao longo de semestres da oficina Cápsula. Como foi essa experiência?

Maria do Socorro Pereira de Assis: Fátima é uma leitora experiente e incansável, por isto e pelo fato de sua família haver guardado entre os recônditos mais oblíquos de suas memórias, uma grave história sobre sua bisavó e avô, tornou-se também, a partir do romance Marie e o Nobre Anônimo, uma narradora de alma indomável. As inserções feitas pela experiência da escrita de Leticia Wierzchovski, na parceria com Fátima, alçaram o texto ao nível das boas narrativas, afinal, a literatura se faz de ideias e de linguagem. De meu canto, eu cumpri um silencioso e apaixonado papel: o de acompanhar o processo. Foi quase um aprendizado ver como Fátima ia preenchendo as lacunas memorialísticas com sua criatividade. Tal preenchimento não macula, — ao contrário —, a verdade dos fatos, pois que o que não se dera por consumado, poderia tê-lo sido. O resultado não poderia ser diferente. O livro é esteio para discussões ricas sobre valores morais, religiosos, honras de família, classes sociais, que, assomadas à beleza do “como se conta”, oferta aos leitores um valoroso cabedal estético.
Em relação aos objetos do universo maravilhoso e contístico das fadas evocados pela narradora, constitui-se mais um diálogo interdisciplinar entre narrativas e épocas do que uma referência ao conceito de realismo fantástico, porque todos os fatos, reais ou ficcionais, são perfeitamente justificados pela razão de quem sonha e ama. E nesse sentido, nada há de extraordinário ou mágico, trata-se de vida: em tese, os leitores e leitoras acreditam que, transformar-se numa gata borralheira ao fim de um baile ou ser ultrajada por um príncipe nem tão palaciano assim, na mesma ocasião, diz respeito à realidade de muita gente hoje.

Uma Revista: E, Leticia, mais um livro sendo lançado! Nesta ocasião, como coautora, junto à Fátima. Como foi a parceria de vocês?

Leticia Wierzchowski: Este livro foi uma experiência diferente para mim… Afinal, o enredo já estava todo ali, criado e pesquisado pela Fátima. Eu entrei como uma estrutura, afinando os tempos da narrativa, trabalhando os personagens que mereciam mais estofo. Foi bem legal de fazer, porque a história é bonita e é atual. Fátima reconstrói a vida da bisavó, cujas pegadas se apagaram porque ela teve um filho bastardo – ou melhor, foram apagadas pelos seus parentes e até pelos seus netos. Mas a bisavó sofreu abuso, de modo que o livro é um libelo póstumo da coragem e inocência de Marie.

Um Revista: Mariana, a história de Marie e o Nobre Anônimo é o mais novo livro a ser lançado pela Bá Editora. O décimo sexto! O que esse livro representa para a Bá Editora?

Mariana Bertolucci: Nossa! Representa muito por vários motivos. O primeiro é o fato de publicar essas duas autoras maravilhosas. A Letícia Wierzchowski, nossa mestra e exemplo de romancista e educadora. E a Fátima Mazzoleni que, além de um doce, é única. Segundo porque há uma relevância e uma beleza melancólica comovente na história da protagonista Marie. É uma história verídica lindamente romanceada com a ideia amorosa de trazer um pouco de amor e alento à parte da vida de uma mulher que foi apagada pela brutalidade do machismo e do preconceito. Marie é a bisavó de Fátima que, em sua primeira obra literária, conseguiu devolver à bisavó e, também, a todas nós, mulheres leitoras, um pouco de ternura e dignidade, mesmo em meio à injustiça. E o terceiro motivo é porque é o primeiro romance da Bá Editora. Estou muito feliz.

A oficina ministrada por Leticia e Maria do Socorro é semestral e ocorre via Zoom. Interessados podem ficar atentos a novas vagas pelo Instagram.

Saiba mais sobre o romance pelas palavras da Profª Dra. Maria do Socorro:

Qual o sangue que circula nas minhas veias, já miscigenado de anos e de amores? Foi respondendo a essa pergunta que Fátima, sacou os dramáticos e até então incompreendidos acontecimentos de sua história familiar do abissal alforje da memória, e manipulou dolorosos dardos, tornando-os ocasiões de felicidade. Na recriação dos fatos que a ficção permite fazer, a paixão e o bom humor dessa narradora um tanto histórica, um tanto ficcional, impediram que as sombras da infelicidade embotassem por completo a vida da personagem central e os olhos do leitor.

Nezamyslice não era de todo um lugar comum. Havia lá um menino sujo que não sabia o que era amar, uma moça com perfume de tílias, ciganos proféticos, uma amiga de fadas, um ourives de joias fabulosas, uma mulher que podia sentir a voz do vento que cantava lá dos bosques, das colinas infindas dos campos… Mas havia também um casamento amaldiçoado por uma filha que sequer viera ao mundo.

Já Hofburg, que parecia lugar de realizações, foi palco de destruição de sonhos. Deu-se por lá um estupro, porque um não foi insuficiente, — é insuficiente desde há muitos séculos — na voz suplicante de uma mulher. Restara uma moça violada por um nobre sem escrúpulos, um filho bastardo concebido no obscuro recanto de um palácio. Duas pessoas que dali por diante viveriam em permanente estado de diáspora.

Quase dois séculos depois, ano de 2024, uma conversa fortuita entre sobrinha e tia provocou uma ebulição no espírito de uma narradora que despontava naquele exato momento. Fora maculada a honra da família, e marcado à ferro e fogo o coração da pobre Marie. A desgraça guardada por tanto tempo combaliu qualquer ato de justiça. Mas, aberto o segredo, abriram-se também as feridas, e esgotou-se o tempo da impunidade e do abandono. Será preciso justiçar aquela mulher, e não há outro caminho. Malas, viagens longas e inúmeras fizeram de Fátima um Marco Polo de saias, uma ventureira atrás de documentos que pudessem comprovar os fatos, acima de tudo.

Mas uma página arrancada sonegou de Marie a profissão exercida com maestria no âmbito do palácio da Imperatriz Sissi, sonegou a sua própria existência, a ausência de um sobrenome ao filho negou-lhe a paternidade como direito, e impingiu a Kornelius, a bastardice.

E os fatos, embora tenham outras indiciadas comprovações, foram de menos para reparar os abusos à Marie. “Sinto-me subitamente tão sozinha aqui com estas linhas… talvez quase tão sozinha quanto fora Marie, minha doce bisavó, a quem estou recriando, sentada num trem repleto de desconhecidos, rumo a uma Viena igualmente estranha”.

Este é um fragmento que bem poderia ser um desabafo de Marie em sua longínqua romaria até Hofburg, mas ele traduz também o sentimento da narradora quando de suas peregrinações à cata da verdade. Assim são as mulheres: incansáveis nas suas caminhadas pela vida. Ao leitor, cabe conferir o imenso bloco de emoções com a leitura de toda a história.

“Resolvi cavoucar o passado à procura da sentença que empurrara a bisavó para o seu exílio afetivo. Assim, resolvi encher estas páginas de tudo aquilo que jamais foi dito sobre ela — montando o quebra-cabeça dos fatos encontrados, inventando o que era apenas silêncio, preenchendo os vãos da sua vida com as histórias possíveis —, de modo a entregar à bisavó um pouco de risos, de amores, um pouco da alegria que a vida, esta malvada, surrupiou-lhe sem piedade. Com os papéis destruídos, ficou-me a
curiosidade e a vontade. Era preciso combater o preconceito cruel, o moralismo 14 de cuecas que costurara o mundo até então, e, junto com ele, as nossas relações familiares. Desse modo, decidi poetizar o passado. Aos poucos, em noites e tardes roubadas do mundo, comecei a compor de palavras os encaixes que faltavam na vida de Marie. Aquela que, um dia, viria a ser minha bisavó…” Saudação a uma narradora de primeira linha, Fátima Mazzoleni!

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