ARTIGO

A Neurociência brasileira entrando para a história com a Polilaminina. “Há 17 anos convivo com as sequelas de uma lesão medular.” Leia a coluna de Sabrina Ferri

Por Sabrina Ferri

            Um estudo promissor para devolver movimentos a pessoas com lesões medulares foi divulgado nesta semana. A notícia viralizou nas redes sociais e a imprensa nacional deu ampla cobertura. Imediatamente, passei a receber mensagens de amigos, familiares e pessoas que torcem por uma descoberta capaz de reverter casos de paralisia.

            O feito é realmente notório na neurociência. Foi através de uma proteína extraída da placenta humana que foi desenvolvida a Polilaminina, um medicamento capaz de regenerar os neurônios da medula espinhal, possibilitando que inúmeros estímulos se reestabeleçam. A cientista da UFRJ, Tatiana Sampaio, se debruçou por incansáveis 25 anos nos estudos da proteína reparadora. Para mim, é muito significativo que um tecido feminino, biologicamente responsável por unir o feto ao útero materno, tenha sido a mola propulsora de um estudo orientado por uma mulher. Presenciar as narrativas sendo escritas pela ótica feminina é tão revolucionário, que quase esqueço de me questionar se a Polilaminina poderia me beneficiar de alguma forma.

            Há 17 anos convivo com as sequelas de uma lesão medular. Isso significa que me adaptei a viver em um corpo com as limitações de uma tetraplegia, adquirida após um acidente. As lesões medulares provocam uma série disfuncionalidades, além das motoras. Vai muito além do não caminhar. Uma das coisas que mais me incomoda, por exemplo, é o fato de a lesão afetar o sistema simpático e parassimpático, acarretando, entre outras coisas, a ausência da percepção de temperatura corporal. Isso significa que meu corpo não consegue se aquecer da maneira adequada, o que já me levou a inúmeros princípios de hipotermia. Existe uma lista de complicações que podem afetar a saúde de quem tem uma lesão medular, a maioria com origem na desregulação do nosso sistema autônomo. Portanto, o que torna a minha deficiência complexa é invisível aos olhos de quem resume as paralisias apenas ao não andar. Arrisco dizer que o mais difícil não foi perceber tais mudanças e, sim, lidar com os olhares e julgamentos das pessoas em relação ao meu novo corpo.

            Isso porque a sociedade reduz as deficiências e as doenças aos seus diagnósticos.

            A palavra cura tem sido utilizada na representação de um atalho, quase sempre na forma de um milagre, o que a torna mais próxima de instituições religiosas do que médicas. Não existe cura para quem não anda, a paralisia é uma condição incapacitante, e não uma doença. E essa é a importância da descoberta da Polilaminina. Ela cria a possibilidade de tratamento e reabilitação não só da parte motora, responsável por nos manter de pé, mas, também, do retorno de um sistema autônomo íntegro, recuperando inúmeras funcionalidades. Não é milagre, é ciência. 

            Não sabemos ainda, em termos de reabilitação, quais engrenagens estariam mais aptas a serem reativadas com a Polilaminina. Inicialmente, foi realizado um estudo clínico acadêmico; o próximo passo é aguardar a liberação da Anvisa para uma nova etapa de estudos, também em pessoas com lesões agudas. A metodologia demanda tempo, um tempo que, no mundo científico, tem um ritmo cauteloso, necessário para assegurar a eficácia e segurança do uso da Polilaminina.

            Não há dúvida de que estamos presenciando a neurociência brasileira entrar para a história, mas, enquanto a medicina valida o uso da Polilaminina em diferentes tipos de lesão, também é válido trazer para o debate temas como inclusão e acessibilidade.

            O mundo continuará sendo diverso, contemplando diferentes corpos e suas deficiências, sejam elas congênitas ou adquiridas.

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