Pela autora Sabrina Ferri

Tus Hijos: “Porque uns nascem flecha, outros arqueiro.”
Publicada em 19 de março de 2023
Quando criança, eu era fascinada por um quadro com um poema de Khalil Gibran. Ficava pendurado no corredor, próximo ao meu quarto, e a curiosidade acompanhou meu crescimento sem que eu fizesse ideia do que o poema dizia. Então, imaginava histórias onde eu colhia margaridas que exalavam seu perfume no curso do vento, como a garota do quadro.
Elas também existiam no meu jardim.
Eram as margaridas do poeta.
Perguntei sobre elas, antes mesmo de saber ler.
“Um poema”, me disseram.
Mas as palavras escritas ali, eu queria tê-las para mim.
Ao completar 6 anos, iniciei a primeira série. Lembro bem da ânsia que eu sentia para ler as coisas ao meu entorno. Os livros da Agatha Christie, Meu Pé de Laranja Lima, letreiros de lanchonete, cartas, anúncios, revistas: eu queria saber tudo e sentia um poder enorme em compreender as palavras do mundo. Perguntei à minha mãe o que eu aprenderia primeiro: ler ou escrever, e arranquei gargalhadas com a inocente pergunta. A explicação não me convenceu, eu achava difícil dominar um feito de tamanha magnitude, e temia não conseguir. Apesar de estar fascinada por ambas, ler, naquele momento, era para mim um passaporte para o mundo.
Cresci rodeada por livros — ser filha caçula tem suas vantagens — pais maduros acumulam histórias e fotos que contam quem somos. E para as outras, existem os livros.
O poema escrito em espanhol me desafiava. Decidida a fazer minha primeira tradução, fui até a biblioteca do meu pai e pesquisei no dicionário o significado de Tus Hijos. Depois, com as palavras que havia descoberto, traduzi um pedaço do poema. Mesmo assim, demorei muito para compreender o verdadeiro sentido daquelas palavras. Acho que até hoje aprendo com elas, e tenho certeza de que minha mãe seguiu ressignificando aquele poema.
Porque uns nascem flecha, outros arqueiro.
E é necessária uma vida para tal entendimento.
Hoje percebo como aquele quadro pautou minha criação, e mesmo que minha geração não seja a mesma de meus irmãos, sei que nossa liberdade para trilhar a transição entre infância e juventude foi composta pelos mais belos exemplos: nossos pais.
Segue o poema de Khalil Gibran em espanhol, como no quadro, para que faças tua própria tradução, com o dicionário empoeirado que habita um canto da tua casa.
Tus Hijos
Tus hijos no son tus hijos,
son hijos e hijas de la vida,
deseosa de sí misma.
No vienen de ti,
sino a través de ti,
y aunque estén contigo,
no te pertenecen.
Puedes darles tu amor,
pero no tus pensamientos,
pues ellos tienen sus propios pensamientos.
Puedes abrigar sus cuerpos,
pero no sus almas,
porque ellos
viven en la casa del mañana,
que no puedes visitar,
ni siquiera en sueños.
Puedes esforzarte en ser como ellos,
pero no procures hacerles semejantes a ti,
porque la vida no retrocede ni se detiene en el ayer.
Tú eres el arco del cual tus hijos,
como flechas vivas,
son lanzados.
Deja que la inclinación,
en tu mano de arquero,
sea para la felicidad.
Khalil Gibran, ensaísta, filósofo e poeta libanês.

O quadro e eu, aos 5 meses.

Anos mais tarde, com as margaridas do poeta.
Peço licença para dedicar essas palavras aos meus pais e irmãos. Dando créditos à fotografa que fez os afetuosos registros, sem os quais não existiriam essas palavras: Mana Jaque.
O amor, um dia, chega? “Foi assim, numa tarde qualquer, que aconteceu; o dia, repito, ela nunca soube.”

Publicada em 17 de janeiro de 2023
Certa vez, em uma viagem, conheci um casal de fotógrafos italianos. Eles rodavam o mundo fazendo retratos de pessoas aleatórias, e foi com eles que eu aprendi a apurar o meu olhar. Passei a registrar as pessoas que chamavam a minha atenção por coisas cotidianas que antes passavam despercebidas.
Fotografar estranhos em lugares distantes nos ensina mais sobre nós do que qualquer autorretrato. Talvez esse tenha sido o motivo para eu nunca esquecer daquela igreja italiana.
Do alto, a vista era de tirar o fôlego. Eu apreciava o entardecer em Florença quando percebi o jovem casal a olhar a cidade. A cerimônia tinha acabado de acontecer. O chão estava coberto por um tapete branco, como se tivesse chovido arroz instantes antes. “Sposa bagnata, sposa fortunata”, como se diz em bom italiano, pois, com sorte, ninguém brinca, e chuva de arroz é tradição levada a sério em qualquer continente.
Eles pareciam acostumados com os turistas ocasionais e pouco se importavam com a falta de privacidade. Conversavam como se existissem apenas eles, mas não esse romantismo comum à cena, nada disso! Riam alto e gesticulavam como se estivessem em uma mesa de bar. As pessoas devolviam olhares curiosos àquela intimidade afrontosa. Foi de uma beleza única os noivos alheios ao mundo, sem pressa para ir embora. E um dos prazeres de viajar é perceber como os estranhos sentem a cidade, como reagem àquela experiência. O que nunca sabemos é a que lugar eles pertencem, que fronteiras romperam para estarem ali.
Eu andava com a minha máquina fotográfica a tiracolo porque sempre gostei de retratos. Há algo mágico em materializar um momento num pedaço de papel, como se pudéssemos voltar no tempo por infinitas vezes. Hoje, no entanto, as fotografias digitais se repetem na busca pelo melhor ângulo, a melhor luz, perdendo, assim, a naturalidade que, um dia, tiveram.
Anos depois, lembrei do retrato no dia em que o telefone tocou. Do outro lado do oceano, uma amiga que tenho a sorte em preservar, aconteça o que for, não importem os anos. Ela falou trivialidades até chegar onde queria: “Não sei se eu quero me casar. O que eu faço?”, quis saber. Quando a pessoa faz essa pergunta, é porque já tem a resposta e, por isso, não me atrevi a respondê-la. Seguimos falando de coisas cotidianas, como um show ao qual fomos juntas, filmes, viagens a destinos inóspitos e o meu cachorro. Quando percebemos, a pergunta já não fazia mais sentido, ela sabia a resposta.
Depois disso ficamos sem nos falar por algum tempo. Não sei se você, caro leitor, cultiva esse tipo de amizade. Espero que tenha essa sorte – alguns laços são insolúveis à ação do tempo. Meses depois, ela embarcou para um mochilão pelo mundo, sozinha e sem data de retorno. Acompanhei as cidades que ela conhecia através das fotos. Que coisa incrível a fotografia, nos leva para lugares que nunca estivemos, traz para perto quem está longe. Eu a segui viajando de trem, provando comidas exóticas, dançando com estranhos que viravam melhores amigos. E, ali, ela estava perto, vibrante e plena, percorrendo lugares que, um dia, desenhamos em forma de mapa na areia da praia.
Combinamos que, quando algo especial precisasse ser contado, ela mandaria um e-mail — essa versão moderna de carta — porque, sim, existe beleza nas prosas longas. Até que, um dia, a mensagem chegou. Era esperada, por isso, não me surpreendi ao ler as linhas repletas de entusiasmo. A união já havia sido celebrada, e não importava o dia; quando as estrelas se alinham, nunca sabemos ao certo. Inclusive, é curioso que o ser humano seja tão apegado às datas; são apenas números que seguem uma sequência cronológica entediante e previsível. Quem quer uma vida assim, calculada na régua e no compasso? Por mais que se faça planos, quando a vida nos surpreende, a última coisa que importa são os números. Foi assim, numa tarde qualquer, que aconteceu. O dia, repito, ela nunca soube. Subiu a tal montanha e, quando a trilha revelou mais dela do que da paisagem, lá do alto, foi um vislumbre.
Estava longe, sozinha e nunca esteve tão completa. Comemorou com uma garrafa de vinho, abriu e bebeu no bico – sem tempo para formalidades. O vestido não fez falta, a pergunta não importava mais. “Pessoas são feitas para transbordar”, ela sempre me disse e eu prometi não esquecer.
Não havia mais dúvida alguma. O amor não chega, ele se instala.
Time Machine: “(…) Grande parte dessas experiências se repete durante a vida, mas nunca como a primeira vez. É a memória que transforma o acontecimento em algo extraordinário!”

Publicada em 29 de setembro de 2022
Há uma frase de José Saramago que diz: “Fisicamente habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”.
Quando experimentamos algo pela primeira vez, armazenamos uma infinidade de dados em nossa memória porque a euforia da descoberta nos torna sensíveis a captar a essência destes momentos. Os cinco sentidos levam até o cérebro informações processadas pelo inconsciente: o sabor do bolo que remete à infância, o perfume da pessoa amada. Tudo nos transporta imediatamente para uma época ou local onde fomos felizes. Esses acontecimentos serão referência para o desenvolvimento pessoal, influenciando futuramente as nossas escolhas. Grande parte dessas experiências se repete durante a vida, mas nunca como a primeira vez. É a memória que transforma o acontecimento em algo extraordinário.
Na fase de zero a 10 anos, o corpo e o cérebro se desenvolvem de forma vertiginosa. O que recordamos desse período fica no campo subjetivo, sujeito ao meio e à educação recebida. Enquanto, na metade da primeira década, armazenamos fragmentos de experiências, na outra metade, somos influenciados por informações coletadas por meio de fotografias e histórias contadas por familiares.
Entre os 10 e 20 anos, transitamos entre a infância, a adolescência e a juventude, experimentando coisas que marcarão para sempre a nossa vida. Em geral, somos apresentados ao amor, a lugares e pessoas nessa fase. Diferente da primeira década, estamos conscientes das nossas escolhas, e as experiências as quais nos submetemos têm papel fundamental nesse processo.
É normal, ao decorrer da vida, buscarmos reviver momentos felizes que habitam a nossa memória. Uma das lembranças mais marcantes do meu pai foi a primeira vez em que tomou sorvete – a experiência foi inesquecível para um garoto criado em uma pequena colônia italiana. Por volta de 1940, o dono do armazém trouxe para a cidade uma máquina de moer gelo; misturar frutas com água congelada resultava na famosa iguaria. Com certeza, meu pai provou dezenas de sabores e qualidades de sorvetes melhores do que aquele ao longo da vida, mas a exótica guabiroba habita a memória afetiva mais doce de que ele se recorda.
Einstein dizia que a diferença entre passado, presente e futuro é apenas a persistente ilusão. Para o criador da Teoria da Relatividade, o fato de o tempo ser relativo se deve à velocidade. Na vida adulta, a rotina nos impõe horários e prazos, fazendo com que a vida pareça correr mais depressa com o passar dos anos. Assim como estamos em constante transformação, a percepção do tempo também se altera. Se, aos 20, 10 anos representam metade de uma vida, aos 50, 10 anos representam apenas 1/5 dela. Parece não haver tempo para novas experiências como na juventude, mas, ao ouvir a música que marcou uma época da nossa vida, automaticamente, somos transportados àquelas lembranças.
E não há nada de errado nisso. Mas, sendo o tempo o intervalo entre dois eventos da vida, não te percas jamais do agora.
Foi acidente? “Veja bem, eu não gosto de mentir. Mas, após todos esses anos, aprendi que esse não é o tipo de conversa breve. Minhas respostas eram curtas, pois, a cada pergunta, outra dúvida surgia.”
Publicada em 21 de agosto de 2022
Dia desses, fui a uma unidade do Tudo Fácil para fazer a minha carteira de identidade. Como o nome mesmo diz, sem filas, sem complicações e com a agência quase sempre vazia.
Eu era a próxima a ser atendida quando o garoto da mesa ao lado me chamou. Com os papéis em mãos e o olhar curioso, perguntou:
— Foi acidente?
— Foi.
— De carro?
— Sim.
Veja bem, eu não gosto de mentir. Mas, após todos esses anos, aprendi que esse não é o tipo de conversa breve. Minhas respostas eram curtas, imediatas, pois, a cada pergunta, outra dúvida surgia. Que balanço? Que altura? Onde? Como? Por quê? Eu precisava evitar explicações detalhadas, não era o momento nem o local. Você pode pressupor que esse tipo de diálogo exige certo grau de intimidade. Caso tenha pensado nisso, sim, ela é necessária. Mas o bom senso é uma flor que não cresce no jardim de todos.
Tantas perguntas levariam aquele papo a um desfecho com conclusões nem sempre agradáveis. Eu apenas queria fugir de situações constrangedoras, de ouvir “você é tão bonita para estar numa cadeira de rodas…” Sério mesmo? Moço, não temos tempo para que eu explique o que significa capacitismo numa tarde chuvosa, dentro de uma repartição pública. Não me leve a mal, falaríamos disso sem problemas, mas precisaríamos de tempo.
Após eu confirmar o suposto acidente, ele passou a divagar sobre a violência no trânsito. E eu, sempre concordando com o que ele dizia.
Fui encaminhada ao guichê ao lado para tirar as minhas digitais. Dividiam a mesa dois estagiários adolescentes. O garoto insistiu em me acompanhar – agora, eu tinha plateia.
Enquanto o mais jovem escaneava as minhas digitais, ele não se conteve e perguntou:
— Isso é… O nome é parap…
Eu interrompo e digo “tetraplegia”.
— Mas mexe o quê?
— Dos ombros pra cima.
— Foi acidente, né?
— Aham.
— De carro?
— É.
— Foi alta velocidade ou…?
— Alta velocidade.
Eu respondo já rindo, não sei mentir. Sinto meu rosto corar e fico com vontade de gritar que é mentira. Rebato mantendo o bom humor e pergunto se eu estava respondendo a um interrogatório.
O garoto, sempre sorridente, conta do acidente de carro que sofreu aos 10 anos. Foi salvo pela irmã, que soltou o cinto, pois o carro caiu de uma ponte.
Então, o jogo vira, uma culpa me corrói por dentro e eu anuncio a mentira. Explico que fica mais fácil concordar com a teoria do acidente do que explicar a queda do balanço. Mas o garoto é sagaz e, quando percebo, já estou sendo interrogada novamente. As perguntas pelo balanço vêm em sequência, rápidas o suficiente para serem esclarecidas antes que o atendimento termine. A curiosidade humana deveria ser estudada. Quase não consigo perguntar quando poderei retira a nova carteira de identidade.
Agradeço e vou embora.
Quando estou entrando no carro, percebo o olhar curioso do taxista que está estacionado ao lado. Ele se dirige à janela do motorista e já chega com a sentença:
— Gelo na nuca — diz ele, afirmando que era milagroso. — É só colocar gelo na nuca. Procura no Google para ver só, cura tudo!
Ele soletra “g-o-o-g-l-e” pausadamente. Reúno as minhas forças para balançar a cabeça, concordando. Não quero dar explicações, quero chegar em casa.
No curto retorno, passamos em frente a igreja Universal; por sorte, ficava do outro lado da rua. Ainda bem, porque o ócio criativo eu aguento… Sermão da igreja, não!