Em 1988, quando tinha 20 anos, Raphael foi sentenciado à prisão perpétua, no Reino Unido, por um crime que não cometeu. Viu-se em uma instituição adulta quando a maioria dos presos nessa faixa etária é colocada em institutos específicos para transgressores jovens; posteriormente, foi enviado para a segurança máxima. Permaneceu preso por 12 anos, dentre os quais estudou jornalismo por correspondência. Finalmente teve suas condenações injustas anuladas em 2000, sendo solto e reintegrado a uma sociedade que já usava celulares.
Hoje, ele é o apresentador da série documental Por Dentro das Prisões mais Severas do Mundo, da Netflix, que revela a realidade do regime fechado sob a perspectiva de detentos em países muito distintos como Brasil e Ucrânia. Em entrevista à Uma Revista, Raphael reflete sobre as gravações dos episódios e abre momentos da sua história.
Por que tanta gente gosta de assistir a conteúdos sobre crimes, sistemas judiciário e prisional?
Raphael Rowe: Primeiramente, prisões são secretas; 99% da população não têm contato ou relações com elas. Essa maioria as vê como um mundo secreto onde pessoas estão trancadas por trás de grandes muros, de portas fechadas. Escutamos falar do que acontece lá dentro, mas muito raramente entramos para ver o que se passa. Em segundo lugar, acredito que muita gente vive sua rotina, vai para o trabalho e pode ser que um dia seja vítima de um crime, ou pode conhecer alguém que foi, mas dificilmente entrará em contato com o crime, a não ser que viva em comunidades onde isso acontece todos os dias. As pessoas que estão fora desse contexto de criminalidade acabam fascinadas por como, quando e por que criminosos fazem o que fazem. Em terceiro lugar, a mídia desempenha um papel significativo ao exibir diariamente reportagens sobre crimes e vítimas de crimes; sobre o medo disso. Então, nós regurgitamos constantemente os perigos da criminalidade – e acredito que isso é usado pelos políticos como ferramenta de controle social. Portanto, o crime é um mundo misterioso que desperta curiosidade. Por fim… Nós estamos confortáveis e seguros em nossa sala assistindo a um filme sobre prisões e pensamos: “Ainda bem que não sou eu ali!”
A decisão de embarcar nessa jornada com a Netflix, claro, não foi fácil.
Raphael Rowe: Decidi que eu abriria os portões de prisões ao redor do mundo às audiências internacionais para que pudessem ter uma noção real de como a vida realmente é lá dentro. Para presos, funcionários, famílias e qualquer pessoa que esteja envolvida com o sistema prisional.
Depois de tantos anos injustamente preso, investigar as piores prisões do mundo significava também revisitar suas próprias lembranças.
Raphael Rowe: Pediram-me para ser um prisioneiro lá dentro, e isso invocaria sérias memórias sobre o meu passado na prisão, que não foi de vivências legais. Mas cheguei à conclusão de que seria importante alguém como eu, com conhecimento e experiência, fazer o trabalho. Por mais que eu estivesse hesitante, sem saber o quanto isso me desafiaria emocionalmente e como me sentiria ao ter de passar a noite em uma prisão de novo, o impacto de educar pessoas ao redor do mundo era mais importante.
Foi assim que Raphael assumiu para si o encargo, ainda que isso significasse se arriscar.
Raphael Rowe: Apesar da minha experiência como prisioneiro e jornalista, ainda assim foi desafiador e perigoso; bastante amedrontador, pois presos são imprevisíveis. Penitenciárias brasileiras, por exemplo, têm a reputação de serem violentas. Pessoas já morreram. Então, você hesita em ir até esses lugares. Mas, no fundo, eu sabia que a minha missão era entrar neles e saber da vida dos presos e dos guardas por eles mesmos.
Então, conversamos sobre as gravações.
Raphael Rowe: Há perigo, há medo. Tínhamos câmeras, havia uma probabilidade menor de sermos vítimas de algo. No entanto, estávamos igualmente cientes do risco de nos tornarmos vítimas. Os presos poderiam enxergar em nós uma oportunidade; usar-nos para exigir melhores condições ou reclamar da falta delas. Estávamos sabendo dos riscos, sempre acompanhados por um guarda e procurando ter certeza de que era um momento seguro para agir.
Pergunto se teve problemas com algum entrevistado.
Raphael Rowe: Em nenhum momento consigo me lembrar de ter sido ameaçado por um detento. Na Ucrânia, alguns deles (que trabalhavam na cozinha) não gostaram do jeito que questionei o gosto da comida, e uma situação assim facilmente fica perigosa, mas ainda bem que não ficou.
Isso porque Raphael sempre se apresenta com naturalidade; seus diálogos com cada entrevistado inspiram confiança e uma inesperada proximidade. Logo, escutamos confissões, cheias de entretons. Raciocínios, reações. Até mesmo fragmentos de um silêncio diferente; um silêncio que reflete a história de cada preso.
Raphael Rowe: Não se tratava de entrar lá e pintar um quadro enganoso. Construí um registro com os presos. Eles sentiram minha honestidade e genuinidade; a empatia e simpatia que eu tenho pela situação deles. Isso tudo balanceado com perguntas a respeito dos níveis de segurança que os guardas enfrentam diariamente. Ou seja, minha abordagem real e genuína foi o que fez o perigoso ser menos perigoso e menos amedrontador, pois eu não estava tentando fazer algo falso.
O apresentador deixa claro que era importante não antagonizar os entrevistados.
Raphael Rowe: Aqueles 12 anos preso por um crime que não cometi formaram a minha personalidade de empatia, sem julgar. De compreender ou tentar compreender. De reconhecer que existem muitas, muitas razões diferentes para as pessoas fazerem o que fazem. Diria que tudo isso me forneceu as ferramentas para ir a uma prisão como jornalista e não representar uma ameaça para ninguém. Se as pessoas não lhe enxergam como uma ameaça, elas ficam mais inclinadas a se comunicarem com você; a se abrirem e compartilharem experiência. Mesmo alguns dos mais perigosos e implacáveis indivíduos que conheci, eu os tratei como seres humanos; como suas famílias e amigos os tratariam, pois meu interesse era genuíno.
Na penitenciária de Porto Velho, em Rondônia, alguns detentos quiseram saber da história do jornalista, instigados pela condenação injusta nos anos 80. Um deles perguntou se Raphael havia pensado em cometer suicídio durante mais de uma década encarcerado.
Raphael Rowe: Eu respondi que nunca, nem por um momento pensei nisso, pois havia pessoas lá fora que me amavam e se importavam comigo. Sei que isso me deu força. Sabia que era inocente, e tirar minha própria vida significaria desistir dessas pessoas. Significaria desistir do que é mais importante que eu, mais importante que elas, que é a justiça. Justiça se sobrepõe a tudo e qualquer coisa. Nós todos a temos dentro do peito; ela nos conduz. Mesmo quando você se encontra no pior momento e sob as mais sombrias circunstâncias, se há algo que pode tirar você do escuro – e para mim foi esperança e luta por justiça –, então você tem algo para viver.
Chego mais perto da sua história pessoal; falamos sobre sua comunidade, quando já convivia com uma realidade dura.
Raphael Rowe: O lugar onde cresci fez de mim um indivíduo que não era imune às dificuldades da vida e da pobreza.
Depois de ser preso injustamente, o empenho pela sobrevivência se tornou urgente.
Raphael Rowe: Fui enviado para uma prisão de segurança máxima, que são as mais duras na Inglaterra. Portanto, viver naqueles locais me endureceu, tanto exterior quanto interiormente. Eu precisava endurecer, mesmo que não fosse para valer na hora; tinha de fingir ser durão, preparar-me para me impor, proteger-me das ameaças. Precisava cuidar de mim próprio fisicamente para ter uma aura de que “se você mexer comigo, estarei preparado para me defender”. Mas o mais importante é que eu tive de construir uma força emocional. Também, reconhecer que todos aqueles homens perigosos ao redor de mim, assim como a ameaça dos guardas… eram todos apenas seres humanos. E eu precisava achar um jeito de me comunicar com eles, de seguir com eles, de compreender uma ameaça quando eu a enxergasse. Então, sim, eu tive de carregar essa força física e emocional comigo quando fui solto, pois foi o que me moldou do jeito que sou hoje.
Como é Raphael agora?
Raphael Rowe: Eu não julgo, e eu não entro em situações ingenuamente.
Pergunto como o jornalismo entrou em sua vida.
Raphael Rowe: Estudei jornalismo enquanto estava na prisão para expor minha situação; depois, passei a usá-lo como forma de destacar as situações de outras pessoas. E situações ao redor do mundo, corrupção, legalidade, criminalidade, o que for.
E Raphael vai além da notícia. Quer ajudar pessoas em situações desesperadoras a acharem uma saída.
Raphael Rowe: Quando você está tão amargurado e frustrado pelo mal que lhe causaram, pode escolher o caminho. Voltar-se para as drogas, álcool e se enterrar na tristeza, ou pode usar a raiva, a amargura e a frustração da mesma forma que eu as usei. Tornar-se uma pessoa melhor para ajudar os outros a serem melhores. Compartilhar experiência, conhecimento.
Ao fim da conversa, falamos de inspiração e motivos que parecem quase não caber em suas palavras. Mas Raphael as escolhe, confiante, e transmite exatamente aquilo que é preciso para entendê-lo.
Raphael Rowe: Nossos insights podem motivar outras pessoas. Eu não sabia disso quando estava travando minha própria luta, fui perceber apenas nos últimos de tantos anos. E minha jornada e experiências ajudaram outras pessoas a se darem conta de que podem superar situações – piores ou melhores que a minha. Elas olham para mim e pensam: “Se ele consegue, eu também consigo.” Isso me encoraja como jornalista. Encontrei um propósito, acredito que as pessoas veem isso na minha história, o propósito. E espero de verdade que qualquer pessoa que se encontre numa situação difícil como a que eu me encontrei saiba de uma coisa: pode ser uma prisão injusta ou qualquer contexto que deixe você com raiva e amargurado – algo que aconteceu ou mesmo a frustração de estar preso em um trabalho e sem saída. Você precisa saber que, a todo ano, sua vida pode mudar. E descrevo dessa forma porque, quando eu tinha 20 anos, Clara, eu estava sentado na cela de uma prisão, pensando que eu passaria o resto da minha vida lá, sem jamais ser solto.
Foto: Amit&Naroop