Na linha de frente do combate aos crimes de pedofilia, a delegada Paula Mary Reis de Albuquerque – que também chefia o Grupo de Repressão aos Crimes Cibernéticos no Rio de Janeiro – explica alguns dos métodos de criminosos para abordar crianças e adolescentes nas redes e reitera a importância do diálogo como uma eficaz maneira de prevenção.

Clara Jardim: Segundo o Instituto É Possível Sonhar, o aumento no número de atendimentos a crianças vítimas de abuso sexual é de 1500% durante a quarentena. Os dados oficiais ainda estão sendo compilados, mas apontam para um crescimento de 50% a 70% das denúncias…
Dra. Paula Mary: É um número assustador! E é ainda mais assustador porque nós sabemos que trabalhamos com números muito abaixo da realidade. Se um aumento de 1500% é assustador por si só, imagina constatar que esse número está sempre aquém dos casos que realmente acontecem. Porque só uma minoria procura ajuda.
Clara Jardim: Há excesso de internet na dinâmica familiar como consequência da pandemia, mas muitos pais e responsáveis não imaginam que esse seja um cenário para abuso sexual, e que possa acontecer com os filhos que estão no quarto, mexendo no computador, sem ninguém por perto. A sociedade se depara com o termo estupro virtual, mas não compreende exatamente do que se trata.
Dra. Paula Mary: Algumas pessoas, como você bem pontuou, não conseguem entender como é que determinados crimes podem ser praticados também pela internet. Eu sempre falo: onde é que vai haver abusador sexual de criança? Por mais óbvio que pareça, onde há criança. Hoje em dia, por conta dessa situação de quarentena, a imensa maioria das crianças – seja por lazer ou seja por conta das aulas online – está passando um tempo excessivo na internet. Na maioria das vezes, de forma desvigiada. Então, muitos dos pais e responsáveis – justamente por acharem que coisas ruins só acontecem na rua – acreditam que as crianças estão superprotegidas por estarem dentro de casa. Falam: “Nossa, meus filhos nunca estiveram tão protegidos exatamente porque agora eles estão dentro de casa, vigiados.” Mesmo que esse “vigiados” não seja o tempo todo, como você pontuou. Por vezes, os responsáveis estão trabalhando ou fazendo os seus afazeres domésticos e acreditam que a criança está na internet brincando, jogando, interagindo com outros coleguinhas ou assistindo às aulas.
Clara Jardim: Quais são exemplos de fonte de abordagem?
Dra. Paula Mary: Redes sociais, plataformas de jogo. Inicia-se uma conversa – pode ser que por um perfil falso. Dali, migram para outros tipos de contato, como o Whatsapp. Essa aproximação pode acontecer de diversas formas; o abusador pode se fazer de amigo. O que acontece? A depender do grau da conversa, ele começa a constranger aquela criança a produzir material. Nisso, crianças e adolescentes acabam sendo enredados, e pode ser que produzam algum material do tipo:
“Manda uma foto agora!”
“Agora eu não posso porque já estou deitada. Tô de camisola.”
“Mas me manda uma foto assim!” Enfim, engana a criança para obter a primeira imagem.
Quando a criança envia essa imagem ou produz esse vídeo, pode ser que ela passe a ser alvo de chantagem depois. O abusador, conhecedor das informações que foram disponibilizadas pela criança em uma rede social, vê quem é o pai e a mãe. Vê que a vítima estuda em tal escola, frequenta esse clube, aquela igreja, mora mais ou menos nessa região. Com esses conhecimentos básicos, o abusador começa a fazer chantagens. Por exemplo: “Agora, você já enviou essa foto! Se não me enviar uma foto sem roupa, desse jeito ou daquela forma, eu vou na sua escola e vou mostrar para todo mundo a foto que você mandou.” Também, faz ameaças contra a família. “Vai acontecer algo grave com seu pai, com a sua mãe, com o seu cachorrinho.” Através desse mecanismo de chantagem e ameaça, o abusador passa a obrigar a vítima a produzir outros tipos de material. A gente vê crianças sendo obrigadas a enfiar lápis, caneta, escova de dente ou de cabelo em tudo que é orifício. Há crianças que perdem a virgindade dessa forma bruta, cruel, monstruosa. Isso seria a figura do estupro virtual. E, infelizmente, é muito mais comum do que as pessoas imaginam.
Clara Jardim: Muita gente não tem nem ideia de que um estupro virtual seja possível…
Dra. Paula Mary: Um dos problemas dessa temática é que tanto as investigações quanto os processos relacionados à violência sexual infantil tramitam em segredo de justiça. Muitas vezes, as informações mais relevantes, que poderiam alertar a sociedade, nós não podemos divulgar. Por isso, as pessoas não ficam tão chocadas, pois não têm acesso à realidade.
Clara Jardim: Não existe um manual com medidas 100% eficazes para que pais e responsáveis evitem, por exemplo, uma tentativa de abuso. Mas o diálogo seria um procedimento básico, correto? O que os adultos podem fazer para proteger a criança de uma eventual abordagem?
Dra. Paula Mary: Certo. Os pais e os responsáveis por crianças precisam ter não apenas intimidade, mas confiança. Também, saber observar as crianças no que elas dizem – e no que elas não dizem, mas que demonstram de alguma forma. Pai e mãe é função que não dá para terceirizar. Hoje em dia, as pessoas querem ter filhos e, às vezes, mesmo na quarentena, até se valem da tecnologia para não terem de se ocupar da criança o dia inteiro. Então, largam a criança no celular e no computador. O que acontece? Eu não estou dizendo que a criança não tem de ter acesso à tecnologia; não é isso. Mas vamos fazer uma comparação bem simples: você deixaria uma criança de cinco, seis, onze anos sozinha em uma rua? Sozinha em um shopping? Acredito que ninguém faria isso. No entanto, em relação à internet, as pessoas fazem isso. Você deixa crianças de tenra idade ou mesmo adolescentes na internet por horas. Na imensa maioria das vezes, pai e mãe não sabem que tipo de conteúdo o filho acessa, com quem conversa, quais as plataformas que usa. Alguns pais dizem “meu filho joga!” ou “ele conversa com os amigos da escola!”, mas não têm certeza. Então, pai e mãe precisam ter acesso ao tipo de material que os filhos usam. Um exemplo comparativo: o filho sai de casa, tem que saber para onde ele vai, com quem vai, que horas volta. É a mesma coisa. “Vai entrar na internet? Tá falando com quem?” Outro exemplo, coisa que também é comum: pai e mãe chegam perto e o adolescente esconde o telefone. “Escondeu o telefone por quê?” A gente tem ferramentas, filtros de controle parental que podem ser instalados para auxiliarem os pais no monitoramento do que não pode ser acessado. Ainda assim, é necessário informar tanto a criança quanto o adolescente dos perigos que existem. Não só ter o feedback do que os filhos estão fazendo na internet, mas orientar sobre o que pode acontecer. Eu faço uma comparação muito simples: todo mundo tem tomada em casa, e tomada é uma coisa muito perigosa. Vou tirar todas as tomadas da minha casa porque eu tenho criança? Não, ninguém tira. Você orienta a criança do mal que a tomada pode fazer, de acordo com a linguagem que a criança compreende.
Clara Jardim: Os crimes de abuso sexual contra crianças e adolescentes estão em séries policiais, filmes e documentários de grande repercussão. Já na mentalidade de muita gente, parecem uma realidade distante, com o qual sua família jamais terá de lidar. Mesmo quando os noticiários reiteram que muitos dos casos ocorrem exatamente na família. Dentro da sua experiência, em meio a tantas investigações de abusos, que são todos hediondos e absurdos, existe um caso que tenha sido ainda mais perturbador?
Dra. Paula Mary: Essa pergunta é muito difícil de ser respondida porque tudo é impactante. Tudo assusta. Atuo nessa área há cerca de quatro anos, mas não tem como dizer que se acostuma com esse tipo de crime. Porque nós, da Polícia Federal, temos acesso às imagens. Você assistir a um vídeo de um bebê de fralda e chupeta sendo estuprado aos berros de dor? É uma imagem que jamais sai da cabeça de uma pessoa. E muda a vida daquela vítima para sempre. A gente tem histórias de crianças com quatro, cinco anos de idade com doença sexualmente transmissível, sem contração no esfíncter, sem prega anal. Desculpe usar essas expressões, mas é o que realmente acontece. A gente tem casos de mães que estupram, que abusam sexualmente dos seus filhos de três, quatro anos de idade para agradar os companheiros, por dinheiro ou por prazer sexual. As motivações são as mais diversas. Qualquer que seja, são cenas chocantes, estarrecedoras. Também, é bom que fique um alerta: não só os homens são abusadores. Existem mulheres que abusam sexualmente de crianças. Talvez, essas sejam as que conseguem passar de forma mais disfarçada no meio social. Outro caso que chama igualmente a atenção é dos abusadores que fazem centenas de vítimas. Quando são descobertos, você constata que eles fazem isso praticamente desde sempre, têm um número de vítimas assustador. Investigados que ocupam uma posição social, econômica, intelectual de destaque. Ou aquele marido que tem a família perfeita, um excelente emprego. “Fulano está acima de qualquer suspeita, é um pai exemplar.” É bom que a gente faça esse alerta. No que as pessoas acreditam de forma equivocada? Que um abusador de criança, pela monstruosidade que ele é capaz de cometer, poderia ser facilmente identificado. Facilmente por quê? Com base em quê? Qual critério que você se utilizaria? Porque ele é feio? Porque ele é pobre? Porque ele é desempregado? Porque ele é da religião X, Y, Z? Justamente por não existir um perfil, as pessoas fazem essa falsa impressão. Por vezes, quando a gente pega alguma situação de flagrante ao deflagrar a operação (o que é muito comum, flagrante da posse dos arquivos ou compartilhamento), a família se choca. Os vizinhos se chocam. “O fulano era o melhor parente, solícito, educado; um homem supersensível”. Então, todos os casos, Clara, eu acho que chocam muito.

Quando você vai ouvir o relato de uma vítima, ela revive aquela situação. Conheço muitas pessoas adultas que foram abusadas na infância e que falam que tudo vem à tona. É uma enxurrada de informação, de cheiro, de lembrança, de som. Mesmo vinte anos depois do abuso praticado, a pessoa passa mal. Tem crise de vômito, cai em uma crise de choro. Tem lembranças que até então estavam aprisionadas. Todos os casos são muito chocantes, eu não destacaria um específico. Outra coisa que chama muito a atenção é a reação das vítimas que não são ouvidas, que a família não atenta para o que está acontecendo. Elas ficam carregando aquela culpa, aquele segredo. Já teve vítima que me relatou: “Não contei antes porque o abusador era alguém da família.” E ela, criança, não se sentia no direito de destruir a felicidade da prima. Eu não consigo imaginar a dor de uma vítima sendo obrigada a conviver com o abusador e ainda carregar essa culpa. As histórias machucam e são cruéis por diversos graus de violência. As pessoas acabam carregando uma verdadeira cicatriz na alma. Talvez, a gente nem consiga apurar quantos crimes foram cometidos, o que é frustrante. A vítima não se recorda de datas e de detalhes, pois ninguém tem uma agenda: “Eu era estuprada nas segundas, quartas e sextas, das 3h às 4h45; aos sábados ele fazia isso; aos domingos, aquilo.” Algumas pessoas querem até minimizar e falam que “é preferível o criminoso estar atrás de uma tela de computador compartilhando arquivos do que estar tocando em criança”, mas a gente sabe que são facetas do mesmo interesse. Ora ele compartilha, ora ele abusa. Para ter acesso àquele tipo de material, ele está fomentando uma rede de produção de arquivos de estupro. A gente pega investigado que tem milhões de arquivos que compartilhou ou publicou. Em cada arquivo daqueles, uma criança foi estuprada. Quantas vítimas foram feitas direta ou indiretamente? E não dá para perder de vista que a gente consegue, com uma boa investigação e processo, fazer a diferença na vida de uma pessoa, sabe? É tentar amenizar de alguma forma aquela dor. Principalmente, romper o ciclo de violência. Evitar que outras crianças sejam vítimas daquele criminoso. O silêncio gera impunidade. O silêncio jamais protege a vítima. O silêncio sempre protege o criminoso. Só com as pessoas denunciando, comunicando, prestando atenção nas suas crianças e seus adolescentes que a gente vai conseguir interromper esse ciclo de violência.
Clara Jardim: Nesse maio laranja, mês de prevenção ao abuso e à exploração sexual contra crianças e adolescentes, o que a sociedade precisa manter em mente sobre o tema?
Dra. Paula Mary: Quando a gente vai falar sobre verdades desagradáveis, a maioria das pessoas opta por fechar os olhos, acreditar que “ah, na minha família não, então eu não quero ouvir, eu não quero ver, eu não quero saber o que acontece, eu não quero conversar sobre isso”. Nega-se uma realidade que as pessoas sequer têm informações do que se trata. Então, a primeira coisa que a sociedade como um todo tem que atentar é para o conhecimento. As pessoas precisam saber do que a gente está falando. Para, então, de posse do conhecimento real do assunto, adotar todas as providências suficientes e necessárias em relação às crianças com as quais convivem. Muitas vezes, dotadas de preconceitos e de informações equivocadas sobre o assunto, as pessoas imaginam que a vítima é “alguém com o corpo formado”. Ou, como eu já ouvi, “isso só acontece com criança pobre; meus filhos estudam em escolas caras, não ficam soltos na rua” – o que é de uma tremenda ignorância. Então é bom que a gente combata todos esses tipos de informações equivocadas. E que a gente esclareça quem é o agressor de crianças e adolescentes, bem como quem são as vítimas. É um problema real de toda a sociedade. Não é um problema só de quem tem filho. A pessoa pode não ter filho, mas ter crianças do seu convívio. Sobrinhos, afilhados, parentes. Ou trabalhar com criança, seja em um hospital ou em uma escola. Precisamos estar conscientes dessa triste realidade. Até porque, na imensa maioria das vezes, as vítimas não têm voz. Elas não têm a quem se socorrer.
Para denunciar abuso sexual de crianças e adolescentes, disque 100.