“O nosso maior medo não é de sermos inadequados ou de errar. O nosso maior medo é de que somos fortes acima de qualquer medida. Não são as nossas trevas que mais nos apavoram. É a nossa luz. Quem sou eu para ser genial ou talentoso? Na verdade, quem é você para não ser? Somos filhos do universo. E como tais, devemos manifestar sua grandeza. Não há nada de glorioso em você se diminuir para que as outras pessoas não se sintam menores. É a sua luz que faz outras pessoas brilharem. Quanto mais você brilhar, inconscientemente, mais permissão você dá para que as outras pessoas façam o mesmo.” Foi assim que Mafoane Odara iniciou um de seus eventos no TEDx, citando Nosso Medo Mais Profundo, de Marianne Williamson.
Psicóloga e Mestre em Psicologia Social pela USP, ela é uma entusiasta da diversidade de ideias e da troca respeitosa, tendo representado o Brasil na ONU ao participar de acordos entre jovens líderes em países latino-americanos, africanos e asiáticos. Especialista em questões relacionadas a direitos humanos e redução das desigualdades, Mafoane também gerencia as causas do Instituto Avon, sendo uma importante voz nos debates sobre os desafios das mulheres nos dias atuais – como o enfrentamento às violências, a maternidade, a carreira e a política institucional.
Em entrevista à Uma Revista, Mafoane compartilha sua visão de mundo e deixa claro: brilhar é preciso.
Clara Jardim: Um dos seus eventos no TEDx foi sobre termos medo de brilhar. Há muitas pessoas que se sentem culpadas pelo sucesso, como se precisassem se desculpar por terem criado algo legal. Por que sentimos essa pressão tão limitadora? Ela vem de onde?
Mafoane Odara: Gentileza é um ato que todo mundo tenta ao máximo praticar com o próximo, né? Só que você também deve se lembrar de ser gentil consigo mesma. Primeiro, evite se comparar. Somos diferentes por natureza, por isso, todo e qualquer tipo de comparação é perda de tempo e de energia. Segundo, celebre pequenas vitórias. Terceiro, não seja exigente consigo, nem com os outros. Aceite suas limitações; Brene Brown fala sobre a importância da vulnerabilidade e a coragem de sermos imperfeitos. Somos especialistas em autossabotagem e muitas vezes esquecemos que algumas coisas não dependem da gente. Quarto, cuide da sua saúde física e emocional. Quinto, não se importe tanto com as opiniões das pessoas. Sexto, aprenda a dizer “NÃO” para os outros e, então, dizer “SIM” para você mesma. Sétimo, estabeleça um pacto com você.
Clara Jardim: Você já falou sobre a necessidade de termos ideias contrastantes representadas na política, bem como cultivar o respeito pelo que é diferente. Em tempos tão polarizados, como podemos atingir esse diálogo entre esquerda, centro e direita?
Mafoane Odara: Conversar com quem pensa diferente é importante e é um trabalho árduo, mas a prática diária torna a conversa mais fluida e prazerosa. Não espere sucesso em suas primeiras tentativas. É comum experimentar desconforto e a sensação de perda de tempo no começo. Confie e encare essa jornada como um treinamento para cultivar uma habilidade fundamental aos tempos atuais. Pense nesse processo como numa maratona, não uma corrida de cem metros rasos, e tente não cair nas armadilhas da polarização. Na minha jornada como construtora de pontes, eu tenho visto que concordamos com 90% dos argumentos envolvidos na discussão, mas iniciamos as conversas pelos 10% que discordamos. Quando a interação deixa de ser um cabo de guerra e se transforma em um diálogo interessado e curioso, é possível surgir conexão mesmo entre duas pessoas que jamais sentariam numa mesa juntas.
Clara Jardim: A inveja é um sentimento naturalizado na sociedade. Não raro somos aconselhados a não contar nossos planos e a temermos o “olho gordo”. Como brilhar se estamos presos a um estado mental dominado pelo medo de provocarmos inveja e de fracassarmos? O que isso diz de nós?
Mafoane Odara: Que sempre vemos o problema como do outro quando, na verdade, todos(as) nós somos o problema! É importante entender que, se não nos colocarmos como parte do problema, não seremos parte da solução. Não há nada de errado nisso. O que nos torna humanos é a nossa capacidade de colaborar; o que nos torna construtores de histórias é a nossa habilidade de reconhecer o valor que as nossas pequenas ações têm durante a nossa jornada; e o que nos torna sonhadores é a possibilidade de imaginar. Que possamos preservar a nossa humanidade, resgatar a nossa História, recuperar a nossa vontade de sonhar.
Uma Revista: O movimento Black Lives Matter vem denunciando o racismo principalmente da polícia norte-americana contra a vida dos negros, e ecoa globalmente. No primeiro debate presidencial, o presidente Trump foi incapaz de condenar supremacistas brancos, e citou a violência usada por manifestantes durante os protestos como justificativa para a lógica dos chamados red necks. Tendo vivido o racismo no Brasil desde que você regressou de Angola, ainda menina na escola, como entende o avanço da luta contra a discriminação racial? Em que passo estamos?
Mafoane Odara: Sou de uma geração que aprendeu, pelo menos intuitivamente, que a diversidade racial importa. E é cada vez mais claro que faz sentido, em termos puramente empresariais. Mas o desafio das empresas, no Brasil, é a criação de um ambiente plural que esteja genuinamente conectado com a sociedade como um todo, com cidadãos e cidadãs, clientes, consumidores de produtos e serviços, assegurando a participação de todas e todos nos processos de tomada de decisões que afetam o cotidiano da vida. Isso só é possível se há diversidade racial dentro das nossas equipes. A Harvard Business Review e a McKinsey revelaram que, quando uma equipe de funcionários da empresa tem pelo menos uma pessoa da mesma raça/etnia do cliente, a equipe tem 152% mais chances de compreender melhor o cliente. Mostraram ainda que empresas cujo conjunto de líderes tinham um perfil diverso, tiveram ampliação da participação no mercado em que já atuam e conquistaram novos mercados. Igualmente melhoraram os índices de inovação e desempenho destas empresas. Esses dados indicam que empresas com índices altos de diversidade de gênero têm 21% mais probabilidade de obter resultados acima da média do seu ramo do que empresas com índices baixos de diversidade; empresas com índices altos de diversidade de raça (negros, orientais, indígenas, latinos, europeus) têm 33% mais probabilidade de obter resultados acima da média da do seu ramo. Ainda sobre a equidade racial, a sub-representação de mulheres negras e negros nos cargos diretivos das grandes corporações é uma questão crucial para o desenvolvimento de um país que não só perde talentos, mas abre mão de perspectivas diferentes daquelas que são hegemônicas hoje nas empresas. Temos um grande desafio para a Avon e estamos construindo um conjunto de ações de forma a contribuir objetivamente para a inclusão e valorização de homens e mulheres negros na empresa, especialmente de mulheres negras, com um plano de ação que: amplie a empregabilidade de pessoas negras e a sua presença em cargos de liderança; acelere a inovação nos produtos que incluam as tonalidades de peles negras; amplie as vozes de mulheres negras em nossas redes, campanhas, fornecedores e decisões; e busque ativamente oportunidades de sermos antirracistas em nosso cotidiano. Empresas mais diversas serão capazes de receber e reter talentos, de melhorar a orientação para as(os) clientes, de satisfazer as(os) funcionárias(os) e de ser mais eficientes na tomada de decisões. Isso nos levará a um ciclo virtuoso de retornos crescentes, inovação e alta performance.
Clara Jardim: Além de nos colocar diante de uma crise de saúde global, o coronavírus também acabou por destacar outra pandemia – a da violência contra mulheres, amplificada pelo confinamento. Como ativista incansável na causa das mulheres, que medidas você acredita que são capazes de combater essa realidade?
Mafoane Odara: A violência contra as mulheres é um problema complexo e todo problema complexo exige uma solução complexa. A solução complexa para a violência exige que a estratégia tenha três elementos: 1. Pessoas e instituições com visões e atuações diferentes, mas que, entre si, tenham os mesmos objetivos e olhem para o mesmo lugar; 2. Colaboração entre os atores; 3. Senso de corresponsabilidade. Aqui no Instituto Avon, que há 12 anos atua no enfrentamento da violência contra mulheres e meninas, começamos a acompanhar com atenção o aumento dos índices de violência doméstica, quando a pandemia começou em países como China e Itália, e identificamos que esse cenário se repetiria no Brasil, levando em conta também nosso contexto econômico, contribuindo para que muitas mulheres dependam financeiramente do seu companheiro. Por isso, quando começamos a pensar em ações e estratégias para atender essas mulheres que estariam ainda mais vulneráveis, colocamos elas no centro das nossas atenções e procuramos entender quais eram as suas principais necessidades, não apenas físicas e emocionais, mas também materiais. E foi com base nesses critérios que desenvolvemos o programa Você Não Está Sozinha, em parceria com mais de 20 empresas. Que foi desenvolvido com o objetivo de mitigar os impactos do isolamento na vida de mulheres e meninas disponibilizando recursos para mulheres e meninas em situação de violência durante a pandemia. O Programa já atendeu mais de sete mil mulheres e se propõe facilitar o acesso às assistências social, psicológica e jurídica. Entendemos que, dessa forma, quando as ações estão voltadas para uma ajuda completa a essa mulher, estamos no caminho para enfrentar essa realidade.
Clara Jardim: Como a maternidade durante a pandemia faz você enxergar a dinâmica entre as mulheres, suas carreiras e a nossa cultura familiar?
Mafoane Odara: A pandemia não traz nenhum problema novo. Antes dela, 94% das mães já tinham dificuldade de conciliar a maternidade com sua carreira. As chances de crescimento de uma mulher sem filhos eram 80% maiores do que uma com filhos. Mas a pandemia evidenciou os preconceitos com a maternidade, a falta de políticas trabalhistas pensadas para as mães, falta de flexibilidade no esquema de trabalho, a sensação de insegurança de manutenção do trabalho e improdutividade da maternidade. Quando a pandemia começou, eu vi muitas mães no meio de um tsunami, com um sentimento de desespero, sem saber como lidar com isso. Foram dias ou meses tentando entender o que estava acontecendo, o que era preciso fazer, com medo do novo, das incertezas e do inesperado. A forma de lidar é muito diferente entre as mães. Há aquelas poucas mulheres que conseguiram encontrar uma forma de equilibrar vida pessoal e profissional, há aquelas que estão tentando encontrar um equilíbrio e há muitas delas que não estão conseguindo lidar com os desafios e estão adoecidas, sentindo-se sozinhas e desamparadas nesse momento. Mas uma coisa é comum a todas elas, a carga mental das mulheres e o acúmulo de trabalho se potencializaram principalmente para elas. A depressão já era uma realidade preocupante no Brasil, e se agravou.
Fotos: Danilo Borges