ENTREVISTA

Além da zona dos medos com o alpinista, empresário e palestrante Rodrigo Raineri: “Eu gosto de mostrar para as pessoas que elas conseguem fazer coisas que parecem de outro mundo”

Por Clara Jardim

Hoje, um dos principais trabalhos do paulistano Rodrigo Raineri é apresentar palestras para públicos diversos, todas baseadas na sua experiência como realizador de grandes projetos. Mas, antes disso, ele foi o primeiro brasileiro a escalar três vezes com sucesso o monte Everest e a guiar expedições nos sete cumes, as montanhas mais altas de cada continente. No topo das conquistas, Rodrigo e o amigo Vitor Negrete foram os únicos brasileiros a escalarem a temida Face Sul do Aconcágua, um marco para a história do esporte. Sua perícia engloba, além do alpinismo, cachoeirismo, mergulhos e voos livres – que tal descer o Mont Blanc de parapente? Foi explorando cada um desses esportes que, aos poucos, Rodrigo transformou sua paixão pela aventura em um empreendimento, e fez da arte de levar pessoas além da zona da morte um dos seus êxitos favoritos. Como fez para concretizar ideias tão plurais e arrojadas? Aos 52 anos, ele conta os caminhos, desafios e guinadas da sua carreira à Uma Revista.

Rodrigo Raineri durante a escalada da Face Sul do Monte Aconcágua, em dezembro de 2001. O crédito da foto é de Vitor Negrete, que faleceu no monte Everest em 2006. Juntos, eles se tornaram os únicos brasileiros a conquistarem a montanha, considerada uma das escaladas mais difíceis do mundo.

Clara Jardim: Para começar, eu gostaria de falar sobre a sua primeira experiência na maior montanha do mundo. Você conta que foi surpreendido por um sentimento de tristeza...

Rodrigo Raineri: Foram várias lições duras em 2005. Talvez, a palavra seja deprimido mesmo. Fiquei triste, fiquei mal. Estávamos indo por aquelas estradas de terra para a base da montanha, no Tibet, e passamos ao lado de leitos de rios de pedra. Havia pessoas fazendo brita com as próprias mãos. Pai, mãe, filho mais velho, até chegar em uma criança com um martelinho, batendo pedra em um estado de pobreza extrema – miséria. E nós estávamos em uma grande expedição, gastando recursos para subir uma montanha. Fiquei mal por dias. A vontade era de pegar todo o dinheiro da expedição e comprar comida para todas aquelas pessoas. E essa foi a primeira dura lição do Everest. Passamos por ruínas de monastérios que foram destruídos quando a China invadiu o Tibet. Você vê a questão das conquistas de perto. Então, no dia que deveria ser o mais feliz, pois eu estava indo para o cume, vi os corpos de alpinistas que faleceram na montanha – isso tirou o brilho do que eu estava fazendo. Foram visões difíceis. Depois, mudei a minha emoção, e outras pessoas me ajudaram. Consegui entender algumas coisas, aceitá-las como parte do processo. Se eu realmente quisesse escalar o Everest, teria de passar por aquilo. E, se aquilo me fizesse mal, ia ser ruim para mim. Consegui melhorar nisso. Ainda assim, não é legal. Se você passa por um acidente no trânsito e há um corpo no chão, não é bacana, e nunca será natural. Mas você segue viagem. Já parei várias vezes para socorrer pessoas; em outras, o SAMU já tinha chegado. E essa situação não pode acabar com a minha vida.

Clara Jardim: Vamos falar das suas expedições. Chegar ao topo do Everest já é consideravelmente desafiador… Mas voltar à montanha mais alta do mundo guiando outras pessoas? Uau. Como foi sua experiência como guia?

Rodrigo Raineri: Se você pensar na Face Sul do Aconcágua, que foi uma das escaladas mais difíceis que já fiz, ninguém vai levar ninguém, pelo dinheiro que for! Não há como contratar um guia para ir a lugares como esse. Você tem de ser competente para ir, não há como pagar e “me leva”. Diferente do Everest, onde você consegue contratar um sherpa, pois existe uma estrutura grande de apoio; e o lugar é agressivo, mas não a ponto de não conseguir trabalhar. Levei muita gente para o Everest, pois dá para trabalhar com certa margem de segurança. Já na Face Sul do Aconcágua, não há como. Lá, a escalada é coisa de gente grande. Só que, quando começamos a ficar conhecidos, isso atrai alguns problemas também. Já tive um cliente que quis se matar em uma escalada. Gente entrando em uma barraca novinha, de 800 dólares, e furando tudo com aquele crampon no pé. “Ah, mas eu tô pagando!” Há coisas que são uma completa falta de senso. Então, não é fácil levar pessoas, principalmente quando você tem um grupo grande. Em um trekking com quatorze pessoas até a base do Everest, você precisa conciliar o ritmo, os assuntos, as expectativas das pessoas; é quase um trabalho de coaching coletivo (risos). É cansativo ser o primeiro a acordar e o último a dormir. Às vezes, vai ter que carregar mais peso. Se alguém ficar doente, você precisa ser paramédico e ter um conhecimento de primeiros socorros gigantesco, pois estão em um lugar sem recurso nenhum – a única solução é o seu conhecimento e os materiais que levou. É desgastante. Pode acontecer de o próprio guia ficar doente, pegar uma bactéria e ter uma infecção. Ainda assim, terá de cuidar dele mesmo e de todo mundo. Você pode chegar em um lugar remoto e a qualidade da comida fornecida não ser boa; pode não ter comida, não ter banho quente ou sequer ter banho. Temos de dar assistência, mas a situação pode fugir do nosso controle, e nem todo mundo compreende isso. É uma profissão difícil. Acho que já contribuí, levei muita gente para lugares legais e, agora, quero focar meu tempo e energia nos meus projetos.

Clara Jardim: Além de toda a sua experiência como alpinista, você também é formado em engenharia da computação pela Unicamp e é especialista em segurança do trabalho – fora a experiência com voo livre, cachoeirismo e mergulho. Mas, sobretudo, você é um gestor de projetos. Como chegou a essa pluralidade de conhecimentos?

Rodrigo Raineri: Quando ainda estava no Ensino Médio, eu visitei algumas cavernas no estado de São Paulo, onde temos uma das maiores concentrações de cavernas do mundo, e há a maior boca de caverna também. A altura da entrada tem 187 metros! Você está dentro da caverna, tomando banho de cachoeira; olha para os lados e para cima e enxerga teto. Fiquei deslumbrado, pois morei em sítio e sempre gostei de natureza. No feriado do 7 de setembro de 1988, fui para o Parque Nacional Itatiaia, no Rio de Janeiro, e escalei o Pico das Agulhas Negras. Foi uma experiência fantástica, incrível! Queria fazer mais daquilo, mas eu não tinha grana para nada; morava em república, comia de bandejão. Para fazer viagens, comecei a ministrar cursos de escalada e a vender equipamentos – mochila, barraca, capa de chuva e coisas que, na época, ninguém vendia. Já que o meu círculo de amizades era de pessoas que praticavam escalada, busquei informação e montamos o grupo Gaia; depois, o grupo de escalada esportiva da Unicamp. Hoje, há uma parede de escalada esportiva lá! No último ano de faculdade, fui fazer o meu estágio na Holanda e escalei o Mont Blanc na França. Em Chamonix, existe uma escola de guias e, para você se tornar guia de montanha, é necessário estudar vários anos lá. Foi quando descobri que existia a profissão de alpinista profissional. Até então, eu dava o curso, mas estudava engenharia, e a ideia era seguir a carreira de engenheiro. Já tinha ido para o Aconcágua e feito um curso de escalada em Bariloche. Descobri a escola de guias em Chamonix e decidi que queria ser alpinista profissional. Voltei para o Brasil e me formei, mas também montei uma empresa na minha casa – a república. Até que me tornei o primeiro brasileiro, e único até hoje, a guiar nos sete cumes. Alasca, Antártica, Aconcágua, Everest, Kilimanjaro, a Pirâmide Carstensz na Indonésia, o Elbrus na Rússia. Também dei muitos cursos sobre trabalho em altura, como o de NR 35, que são as normas de segurança em altura. Hoje, faço palestras motivacionais, mas também sobre segurança do trabalho, pois eu tive a infelicidade de perder o meu companheiro de escalada no Everest. O Vitor, em 2006. Daquele evento para cá, comecei a tentar sensibilizar as pessoas para a questão da segurança. Não acho que você deva deixar de fazer as coisas, mas avaliar muito bem. Treinar, estar preparado e com os equipamentos corretos para fazer com a maior segurança possível – tanto que eu continuei escalando, e incentivo as pessoas.

Clara Jardim: Você mencionou o falecimento do Vitor no monte Everest. Como lidou com a perda de um colega tão próximo de escalada?

Rodrigo Raineri: Quando aconteceu, pensei em abandonar o alpinismo. Sonhava com o Vitor todas as noites. E me culpava. “Por que eu não estava com ele lá?” Uma série de questões pessoais mesmo que eu precisava resolver. Foi quando comecei a voar de parapente e outras coisas. Mas, em 2007, decidi que ia continuar escalando e montei um novo projeto para vender.

Rodrigo Raineri testa as condições de voo no ar rarefeito com seu parapente, em 2011, no Glaciar de Khumbu, próximo ao acampamento base do Everest. Ele está a 5.300 metros de altitude. Crédito: Arquivo Pessoal

Clara Jardim: Você conta que gosta de ajudar as pessoas a superarem seus medos…

Rodrigo Raineri: Eu gosto de mostrar para as pessoas que elas conseguem fazer coisas que parecem de outro mundo. Já levei uma pessoa que tinha claustrofobia para essas cavernas do Parque Turístico do Alto da Ribeira. Ele não andava nem de elevador. E não é que deixou de ter medo, mas começou a acreditar que era possível. Já levei gente com medo de altura para subir o Agulhas Negras. Minha esposa tem medo de água e mergulhou comigo em Noronha. Esses dias, também mergulhou em uma piscina com três metros e meio de profundidade. Foi até o fundo. Eu gosto bastante disso, quando as pessoas tentam e têm coragem para superar alguns medos. Porque medo todo mundo tem, e são medos diferentes. Mas existem medos que não fazem sentido; por exemplo, há quem tenha medo de borboleta. O que uma borboleta pode fazer de mal para você? No máximo, o pózinho dela pode ir no seu olho. E são tão bonitas, mas há pessoas que ficam tensas com a ideia de encontrar borboletas no caminho de uma trilha. Também, muita gente duvida que consiga encarar a parte física do desafio; acham que algumas coisas são apenas para o Super-Homem. Claro que a carga genética influencia, mas há o treinamento, a determinação, o equipamento e uma série de outras coisas. Você pode não ser o campeão mundial de escalada, mas se quiser fazer uma escalada que seja agradável, o seu próprio Everest, eu levo você. Vamos embora! O importante é a experiência, é voltar feliz com você mesmo.

Clara Jardim: Como você ajuda as pessoas a perderem esses medos?

Rodrigo Raineri: Claro, a pessoa tem que querer. E o mais importante é ela ter confiança. Se uma pessoa com medo de altura pede minha ajuda, eu coloco um cinto de escalada nela; uso uma corda para pendurá-la baixinho. Faço isso para que tenha uma experiência bacana em uma altura baixa e confie no equipamento. Beleza, vamos embora! “Ah, mas hoje eu não vou subir”, e não precisa subir. Uma outra história… Certa vez, uma pessoa veio falar comigo depois da minha palestra. “Rodrigo, o meu sonho é mergulhar. Assisto vídeo de mergulho, mas morro de medo de água. O que eu faço?” Pensei que alguma informação tinha de estar errada ali. Não é possível você desejar fazer uma coisa da qual tem pavor. “Primeiro, você gosta da água? Você curte ficar embaixo do chuveiro com água quente no inverno, ou tomar um banho frio no verão?” Ele respondeu que sim. “E quando você toma banho de banheira?” Mas ele nunca tinha entrado em banheiras, nem piscinas, pois tinha medo. “Então, você precisa descobrir se gosta do ambiente aquático. Leve a sua esposa a um motel e experimente a hidromassagem.” Sempre lembrando que é importante prender o cabelo antes de entrar na banheira, pois há o perigo de o aspirador puxar o cabelo, e há mortes por afogamento por causa disso – sempre minha questão com segurança (risos)! “Mas entre na banheira, coloque sabão, ligue a hidromassagem e veja se você gosta. Se gostar, vá para uma piscina, mesmo que seja de criança. Se curtir, contrate um bom professor de natação, desses que dão aula para crianças mesmo, e vá se acostumando. Quando estiver nadando, faça um curso de mergulho. E você realizará o seu sonho.” O tempo passou. Um dia, ele me encontra em algum lugar e vem falar comigo. “Rodrigo, você mudou a minha vida. Lembra daquele cara com medo de água? Sou eu, e estou mergulhando! Fiz o que você falou. Levei minha mulher a um motel, gostei da hidromassagem, comprei uma banheira para a minha casa, fiz aulas de natação e depois o curso de mergulho; e estou mergulhando!” A pessoa tem potencial, pois ela quer fazer aquilo. E acho superlegal encontrar esse caminho. Minha esposa sonhou que estávamos mergulhando e vendo peixinhos, então “vamos mergulhar e ver peixinhos”. Hoje, ela já atravessa a piscina nadando. Se a pessoa quer muito, por que não tentar pelo menos?

Clara Jardim: Como você transformou as suas aventuras em um empreendimento?

Rodrigo Raineri: Eu comecei a levar pessoas para as cavernas e para fazer trilha de graça, pela amizade. Gostava e queria fazer isso. Precisava ganhar dinheiro de alguma forma e, no início, isso foi um conflito para a mim, pois eu não sabia cobrar. Ficava sem jeito e acabava ficando amigo de todo mundo, mas me orientavam a cobrar e a valorizar o meu trabalho. Quando abdiquei de ser engenheiro de computação, continuava tendo contas para pagar e família. A partir do momento em que aquela atividade passou a ser uma profissão para mim, algumas pessoas foram resistentes e me acharam um mercenário. Não entendiam que não se tratava de um hobby, mas de um trabalho. Se eu não cobrasse, não conseguiria viver daquilo… Teria de ser engenheiro.

Uma das conquistas do cume do Everest, em maio de 2013. Crédito: Arquivo Pessoal

Clara Jardim: E como adquiriu conhecimento para organizar expedições tão ousadas?

Rodrigo Raineri: A primeira vez que fui ao Everest para escalar foi em 2005. Mas já havia ido até a base em 2003 para conhecer o Nepal, o Everest e o esquema das grandes expedições. Precisava ter conhecimento para poder montar um projeto. Era o aniversário de 50 anos da conquista da montanha, um ano marcante, e eu queria estar lá, participar daquilo tudo. Depois, montei um sistema de trabalho com a minha empresa. O cliente queria ir até a base do Everest? Eu organizava um grupo de trekking, contratava um guia local, uma agência local bacana, fazia seguro, dava treinamento, dava consultoria sobre os equipamentos, fazia todas as reservas e ia junto. Pois, hoje, você não precisa ter conhecimento do lugar; tudo está no GPS. Guiei na Antártida, na Rússia e em vários outros lugares sem nunca ter ido antes – o importante é você fazer uma boa gestão da expedição. Dessa forma, consegui viabilizar os meus próprios sonhos. Claro que ir a trabalho é diferente, mas como eu me organizava? Por exemplo, dava um curso de escalada em gelo na Bolívia. Depois, levava os clientes ao aeroporto, mas permanecia lá para fazer as minhas próprias escaladas. Fiz inúmeras expedições. Acho que já fui seis vezes de carro para Mendoza, e são 3.000 quilômetros.

Durante a descida do monte Everest, em 2013, na aresta Sudeste, entre o cume principal e o cume Sul. Crédito: Arquivo Pessoal

Clara Jardim: Como foi a passagem pela Cascata de Gelo no Everest?

Rodrigo Raineri: Nossa, uma loucura! Nós passamos pela Cascata de Gelo pela madrugada, que é o horário mais seguro. Sabe aquelas escadas atravessadas que servem de ponte? Eu estava atravessando uma ponte com duas ou três escadas, devia ser umas 4h da manhã. Naquele momento, sozinho. O Eduardo, que me acompanhava, estava um pouco para trás. Você aponta a lanterna para aquele buraco enorme e não consegue ver o fundo. Logo, começou um desmoronamento de gelo lá embaixo. Barulho de água e de blocos de gelo. Não sabia se continuava subindo, mas pensei rápido. Melhor estar para cima do que para baixo, não é? Terminei de atravessar a escada, e o barulho parou. Não teve avalanche, mas foi um aviso de que eu estava em um local perigoso e traiçoeiro. “Fique esperto.” A montanha dá os seus sinais, temos de saber interpretar.

Rodrigo Raineri se hidrata com chá no topo do monte Everest, a 8.848 metros de altitude, em 2008. Crédito: Eduardo Keppke

Clara Jardim: Suas palestras motivacionais partem da experiência em montanhas?

Rodrigo Raineri: O pano de fundo das palestras são as minhas expedições, e as mais conhecidas são de alpinismo, mas a minha experiência é com diversos projetos. Fui fazer um evento na Academia Militar de Força Aérea de Pirassununga, e o tema da palestra era Fé na Missão. Havia mais de 1.200 militares, do brigadeiro ao aspirante. Como tenho vários projetos com balão de ar quente, parapente e paramotor, tive mais elementos de voo livre do que de montanha para aquele público, que trabalha com o ar.

Clara Jardim: Para a gente encerrar, conte um pouquinho sobre os seus livros, No Teto do Mundo e Imagens do Teto do Mundo! E qual é o seu próximo destino?

Rodrigo Raineri: Eu abro o meu livro de histórias, No Teto do Mundo, com uma carta para o meu filho. Uma carta que escrevi antes de escalar a Face Sul do Aconcágua, e ela nunca chegou a ser entregue, pois deu tudo certo na escalada, e a carta voltou para mim. Escrevi o livro com o jornalista Diogo Schelp, e foi um sucesso de vendas. Já quem encerra o meu livro de fotos, Imagens do Teto do Mundo, é o meu filho com uma carta para mim. E a última foto foi feita por ele, aos 13 anos, no trekking do Everest. Quanto ao próximo destino, um dos projetos é chegar ao Polo Sul!