Você acha que a síndrome de Down é uma barreira para a prática de esportes? O carioca Denis Igreja é faixa azul de Jiu Jitsu, e começou a aprender a luta em um lugar bastante emblemático, a academia de ninguém mais, ninguém menos que Roger Gracie, na Inglaterra.
O mestre Luciano Cristovam, no terceiro grau da faixa preta e primo de Roger, já ensinava a arte suave para as irmãs de Denis – Fernanda e Flávia. “Estávamos morando em Londres, e eu queria que meu irmão ficasse mais ativo. Como já treinávamos na academia e ele gostava de assistir, decidimos tentar”, conta Fernanda, ao lado de Denis e Luciano, em conversa com a Uma Revista.
Campeão mundial, europeu e de Pan-Americanos, Luciano precisou repensar o plano das aulas para Denis, pois o novo aluno estava aprendendo mais rápido do que o previsto. “Até me pegou de surpresa, pois eu tinha planejado tudo de uma forma bem simples, e tive de mudar na hora”, explica. “Então, fui ensinando mais posições. Na segunda aula, esperava recapitular, e isso demoraria um pouco porque é assim com todos os alunos; muita informação e não lembram de tudo. Mas o Denis foi agarrando o meu kimono e demonstrando o que havia aprendido. E eu falei: ‘Caramba!’ Já fui passando tudo o que ensinaria em uma aula normal de Jiu Jitsu, pois ele absorveu muito bem.”
Em 2020, aos 40 anos, Denis estava aprendendo um esporte novo e, mais que isso, surpreendendo a sua própria família.

“É até engraçado porque as pessoas duvidam um pouco da capacidade de quem tem síndrome de Down. Há toda a deficiência, e sabemos que o processo de aprendizagem é um pouco mais lento que o nosso”, explica Fernanda. “Por mais que a gente sempre tenha incentivado ele a fazer exercícios como natação e musculação, não eram específicos como uma luta. Então, foi muito interessante observar que ele conseguia. Ver o meu irmão fazendo uma queda de bater com os braços? Ele me surpreendeu.“
Quanto à conquista da faixa azul, Luciano faz questão de ressaltar o merecimento do aluno. “Denis foi evoluindo a cada aula e praticando em casa com as irmãs. Quando pegou o quarto grau, expliquei que teria de fazer o exame de faixa na presença do mestre Maurício. E começamos a prepará-lo para esse exame, que teve duração de duas horas, recapitulando tudo o que havia aprendido e fazendo mais algumas coisinhas que adicionamos. Ele fez uma posição atrás da outra, não teve erro. Não precisei corrigir nada, nem lembrá-lo de nada. E recebeu a faixa azul com muito mérito.“
“Meu tio Maurício sempre me falou que não existe aluno ruim, e sim professor ruim”, relata Luciano. “Se o professor é bom, tem paciência e motiva, o aluno consegue chegar onde ele quer. É preciso saber passar o conhecimento de uma forma que consiga abranger vários alunos – o Denis, a Fernanda, a minha mãe, um garoto de vinte anos, um competidor. Abrange mulheres, crianças… Abrange ensinar uma senhora a se defender. Abrange todos. E o Denis é a prova disso, pois ele se esforçou, continuou indo às aulas. É um esporte complexo, mas os alunos aprendem quando você sabe passar a didática.”

Alguma finalização favorita? “Americana e Kimura”, responde Denis, que não era uma exceção na academia de Roger Gracie. “Havia alunos como o Rob Long, ex-militar e cego, e o Justin Levene, que é cadeirante”, relembra Fernanda. Luciano acrescenta: “Temos prazer em dar apoio a essas pessoas e fazer elas sentirem que, no final, somos todos iguais. Temos diferenças e ninguém é cem por cento perfeito ou imperfeito. O professor de Jiu Jitsu é um educador. Isso inclui crianças e adultos. E inclui deficientes. Acho interessante como esse esporte tem mostrado ser para todos.”

Foto: Arquivo Pessoal
Luciano também fala sobre a amizade consolidada no tatame. “É um clima familiar e bom. Todo mundo quer ficar saudável, desenvolver a autoconfiança e aprender a se defender – um só pacote que o Jiu Jitsu oferece. Você está o tempo todo perto das pessoas nesse tipo de luta, então cria uma intimidade muito diferente. Termina o treino, aperta a mão e agradece, pois precisa do seu parceiro para treinar.”
Quando Carlos Gracie, avô de Roger, criou o Jiu Jitsu Brasileiro, seu objetivo era que os mais fracos conseguissem se defender, e que valores filosóficos fossem cultivados ao longo da prática. “Hoje, há academias que se fecham apenas para competidores e campeonatos”, explica Luciano. “Competir é muito legal, e eu sou competidor. Mas o esporte é muito mais que isso, essa é uma pequena fração. A arte está se transformando… Esse é o grande ponto, haverá uma reciclagem. Quem não se adaptar, fechará as portas”, completa.