Em 2019, as irmãs Anna e Simone, moradoras do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, iniciaram o projeto jornalístico Garotas da Maré com o objetivo de informar a favela sobre o mundo – e o mundo sobre a favela. Abordando política, feminismo e cultura, elas lançaram perfis no Twitter e no Instagram como canais de comunicação comunitária, inspiradas por Marielle Franco e determinadas a fazerem a diferença em mais comunidades.
Com a chegada da pandemia, famílias inteiras que já lutavam para sobreviver tiveram sua renda ainda mais reduzida, ou mesmo zerada – isso em meio à ameaça constante de um vírus tão desconhecido quanto letal, e da necessidade de isolamento social sem recursos mínimos. As consequências no estado de saúde mental da população, por sua vez, não foram menos preocupantes, sendo a depressão e os transtornos de ansiedade algumas das doenças mais observadas. E as irmãs mareenses foram atrás de socorro para a comunidade.
Em entrevista à Uma Revista, Simone Lauar e Anna Neves contam sobre a iniciativa Mentes da Maré, seu impacto, e o trabalho nas redes sociais.

Clara Jardim: Vocês trabalhavam no Jornal Cidadão. Então, decidiram criar seu próprio informativo, voltado para as pautas que vocês desejavam abordar. Assim, usando apenas um smartphone, nasceu o Garotas da Maré! Como foi esse processo?
Simone Lauar: Foi do nada! Certa noite, estávamos conversando… “Se a gente não está concordando muito (com a linha do Jornal Cidadão), vamos fazer uma coisa nossa!
Anna Neves: E a gente pegou o gosto por fazer esse tipo de trabalho, pois eles nos ensinaram muita coisa. A Simone trabalhava como jornalista mesmo, e eu atuava nas redes sociais. A gente aprendeu muito. Então, quando saímos por não concordarmos com certos parâmetros, montamos o Garotas da Maré. A Simone seguiu fazendo as entrevistas e eu fiquei mais nas redes sociais. E, assim, foi indo! Abrimos o Twitter para as notícias da hora, e o Instagram, que todo mundo gosta.
Clara Jardim: Como vocês se envolveram com jornalismo?
Simone Lauar: Eu comecei primeiro, pois conheci a Giselle Martins na minha escola, dando palestra. E ela conhecia o pessoal do Jornal Cidadão. Na verdade, eu queria ser publicitária (risos)! Aí, ela me falou que seria uma grande experiência se eu entrasse como voluntária no Cidadão, pois eu conheceria pessoas e faria contatos. E minha primeira matéria foi cobrir a medalha que Marielle Franco deu à Conceição Evaristo. No dia seguinte, conversei com Marielle, e ela me falou que eu tinha tino para ser comunicadora, pois sou muito espontânea – a Maré precisava de pessoas assim no meio da comunicação. Era muito escasso. Hoje, de fato, como jornal mesmo, só existe o Garotas da Maré, o Maré de Notícias e o Jornal Cidadão aqui. Fiquei com aquilo na cabeça até que, no 14 de março de 2018, o dia em que Marielle seria assassinada, ela me chamou para cobrir o evento da Casa das Pretas. Eu não podia ir, mas ela me pediu para assistir à live e fazer uma matéria. Assisti, escrevi a matéria e, logo depois, soube do assassinato dela. Dali, virei uma militante e me interessei mais por política. Porque achei o assassinato algo que… Olha, nem sei como te explicar. Na época, eu não ligava muito para política, para nada. E a primeira política que eu conheci foi ela. A Marielle era uma pessoa extremamente acessível, do povo mesmo, sabe? E comecei a me envolver com as coisas que ela produzia, também por ser da Maré. Então, quando a Marielle faleceu, entrei de cabeça. Foi quando eu realmente virei uma comunicadora comunitária. Passei a estudar, e quero fazer faculdade de Ciências Políticas, pois ainda não tenho curso superior.
Clara Jardim: E o nome Garotas da Maré não deixa de ser uma homenagem muito bonita à Marielle, né?
Simone Lauar: Eu vivo falando isso para a filha dela, a Luyara. Também tenho contato com a Anielle, irmã da Marielle. Porque o Garotas da Maré não deixa de ser uma semente dela, sabe? Ela plantou em mim essa semente da comunicação comunitária. E uma coisa que falo muito para a Anielle é que, na época em que eu queria estudar propaganda e marketing, não gostava muito nem conhecia direito a favela onde eu vivo. Minha irmã e eu morávamos na Tijuca, e viemos para a Maré quando perdemos nossas irmãs. Então, digo que a Marielle também me ensinou a conhecer esse território chamado Maré. Hoje, temos muitos amigos aqui que ajudam muito a gente a crescer. E é muito bacana o que ela acabou fazendo por mim.
Clara Jardim: Como vocês passaram a conhecer o território da Maré?
Simone Lauar: A gente acabou descobrindo com o Jornal Cidadão. Conheci muito de História, pois o Cidadão da Maré vem de um projeto do Museu da Maré, onde há todo o arquivo de histórias da comunidade – desde a primeira casa até a atualidade. É História pura o que se encontra lá dentro. Hoje, também pelas redes como o Maré de Notícias, acabamos conhecendo a parte técnica – estatísticas e pesquisas sobre a população.

Clara Jardim: Então, depois de criarem o Garotas da Maré, veio a pandemia… Como surgiu o Mentes da Maré?
Simone Lauar: Minha irmã, Anna, sofre de depressão, ansiedade e síndrome do pânico. Eu sofro de ansiedade. E, no começo da pandemia, em março de 2020, vimos muitos casos de pessoas que estavam cometendo suicídio. Pois perderam o emprego, não conseguiam alimentar a família. Perderam o companheiro ou um familiar muito próximo. E falei para a Anna: “A gente precisa dar um jeito.” Porque, aqui na favela, não tem suporte psicológico, nem remédio nos postos e clínicas. E a Anna deu a ideia do nome, o Mentes da Maré. Então, ela entrou em contato com um grupo de psicólogos que viraram nossos voluntários. E, por meio do WhatsApp, foram atendendo e encaminhando pessoas para um tratamento. Vemos muitas ações sociais que dão três consultas. Mas, para quem tem um problema psicológico, três consultas não adianta. Questionamos isso. Conversamos com os psicólogos, “vamos entrar em contato com algum CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) para onde vocês possam encaminhar essas pessoas”.
Anna Neves: Porque há pessoas que não precisam apenas de um psicólogo e, sim, de um psicólogo e de um psiquiatra. E conseguimos entrar em contato com um CAPS que encaminhasse as pessoas com problemas mais agudos para um psiquiatra. Elas precisavam de medicação, não era apenas uma conversa. Assim, conseguimos que essas pessoas fossem tratadas, pois ainda há muito elitismo na hora de falarmos de saúde mental. Quando montamos o Mentes da Maré, foi um sucesso instantâneo. Foi uma fórmula muito bacana, pois a pessoa só precisava de um celular com WhatsApp. Só isso, e vamos embora!
Simone Lauar: E estamos tentando ampliar a ação. Como houve aquela retomada, os psicólogos tiveram de voltar aos seus empregos, mas muitos deles ainda atendem pacientes do Mentes da Maré. Eles só não conseguem pegar novos pacientes. No momento, tentamos unir mais psicólogos para que mais pessoas sejam atendidas na ação. Nosso intuito é que não fique só na Maré, mas que vá para outras favelas.
Ajude o Garotas da Maré a comprar um notebook e, também, colabore com a ação Mentes da Maré!
Clara Jardim: O Mentes da Maré, uma ação do informativo Garotas da Maré, salvou vidas com atendimento psicológico e psiquiátrico para a comunidade do Complexo da Maré em um dos piores momentos da pandemia. O valor do trabalho de vocês é inestimável…
Simone Lauar: Com a experiência de não termos atendimento psicológico para minha irmã e para mim, a gente acabou ajudando várias pessoas a descobrirem que estavam com uma doença, e a se tratarem. Um psicólogo que é nosso amigo está nos ajudando a fazer cartilhas que explicam o que é cada doença, pois há muita gente que não sabe o que tem. Já entramos em contato com postos daqui para deixarmos essas cartilhas, e responderam que sim, pois será muito bom. Agora, buscamos patrocínio para que possamos deixar as cartilhas nos postos e clínicas. Para que as pessoas vejam que, talvez, a falta de concentração pode ser uma depressão ou ansiedade chegando; que a vontade de não sair de casa pode ser o começo de uma síndrome do pânico. E que precisam tratar isso. Por experiência própria nossa. Minha irmã começou com muito cansaço mental e, hoje, ela tem as três doenças. Por isso, queremos auxiliar a pessoa para que comece a se tratar o mais rápido possível e não chegue a um estágio em que não consegue mais nem sair de casa. Nós conhecemos pessoas que não estão saindo de casa.
Anna Neves: Na pandemia, tudo ficou muito à flor da pele. Luto, falta de emprego, doença, racismo. Os medos das pessoas foram saindo para fora. Muitos temas sérios como o suicídio. Aí que entram os psiquiatras. E fomos fazendo a mediação do psicólogo ao psiquiatra. Virei a tia Anna do Mentes da Maré, fui absorvendo o jeito dos profissionais tratarem as pessoas. “O seu psicólogo vai ficar com você, mas você também precisa de um médico para a sua depressão.” Fora que eu gosto muito de Psicologia, li muitos livros. E foi legal lidar com pessoas que têm o mesmo problema que eu, pois me sentia muito só. Como se apenas eu tivesse aquilo. O Mentes da Maré mostrou que havia pessoas com problemas até piores que o meu. Lidando com elas, fui entendendo que havia problemas muito piores. Uma mãe solteira, que cuida do seu filho, de repente, perde o emprego, não tem como sustentar a casa, nem pagar o aluguel. E ela fala que vai matar o filho e se matar. Chegou a esse ponto aqui na favela! Essa foi uma pessoa que foi encaminhada para o psiquiatra. “Não, espera aí. Vamos tirar essa ideia da sua cabeça.” Como mediadora, tive conversas com ela para encaminhá-la ao psicólogo que eu achava mais adequado. E, depois, mediei o contato com o psiquiatra. Até que ela começou a ser tratada. E, graças a Deus, ela está bem.
Simone Lauar: E é uma teia. Nós ajudamos com psicólogos e psiquiatras. Mas, se tivéssemos um patrocínio, ajudaríamos essa mãe a alimentar o filho dela. Porque, querendo ou não, foi a perda do emprego, a cesta básica que ela precisava. Hoje, podemos pedir para algum parceiro… “Poxa, tem como você conseguir uma cesta básica para essa mãe que estamos tratando no Mentes da Maré?” E nós ainda não tínhamos esses contatos quando a pandemia começou.
Clara Jardim: O sistema que vocês montaram é genial… Pois estamos falando de um processo trabalhoso, que depende de fatores externos como a disponibilidade de profissionais da Saúde, mas esquematizado e simplificado pelo Garotas da Maré para pacientes que dificilmente teriam acesso a um tratamento completo. Tudo por uma chamada de WhatsApp.
Anna Neves: Pensamos na praticidade da pessoa ser atendida em casa. Como estamos trabalhando com pacientes de periferia, a pessoa pode não ter nem R$ 4,00 para a passagem do ônibus. Com a volta, daria R$ 8,00. Às vezes, temos de escolher. Ou você paga o ônibus, ou compra o remédio, ou compra uma carne.
Simone Lauar: E queremos que continue online. Primeiro, porque não sabemos o que está por vir. Segundo, porque é mais prático para o paciente e para o profissional que o atende.
Mais informações no Instagram e no Twitter do Garotas da Maré!