ENTREVISTA

“O sentimento da gratidão é extremamente sofisticado; é uma conquista emocional”: uma conversa com a psicóloga e psicanalista Antônia Campos

Por Clara Jardim

Entrevista com Antônia Campos, psicóloga e psicanalista, especialista em Psicologia Hospitalar com ênfase em trauma e emergência pelo Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre, e membro efetivo do Estudos Integrados de Psicanálise (ESIP).

UR: Depois de escutar a sua participação no podcast Garimpando Sentido, tornou-se impossível tirar da cabeça a ideia de entrevistá-la a partir de uma frase muito interessante – “a gratidão é um sentimento muito sofisticado; que exige muita maturidade”. Você havia citado o exemplo de quando pais adotivos esperam que a criança adotada demonstre, de alguma maneira, gratidão a eles. No entanto, trata-se de uma criança, ou seja, um ser humano que ainda está longe da maturidade para cultivar esse sentimento. E não é incomum que uma criança adotada teste os seus pais adotivos até o limite, isso como um meio de obter a certeza de que não será abandonada novamente. Claro, é um exemplo bastante específico e cheio de particularidades! Mas podemos transpor esse mesmo comentário sobre a gratidão para diversas situações, não?

Antônia Campos: Certamente! O sentimento de gratidão não nasce pronto. Ele pode ser entendido como uma conquista do ponto de vista emocional. Conquistamos a capacidade de nos sentirmos gratos conforme amadurecemos emocionalmente. Este é um processo que acontece ao longo de toda a vida e que se desenvolve através das nossas relações mais profundas com outras pessoas. Não é raro que os relacionamentos gerem muitas frustrações quando alguém espera receber gratidão e não encontra. Isso pode acontecer em diferentes contextos: uma pessoa faz algo e espera um reconhecimento em troca, enquanto a outra pode alegar que nunca pediu nada daquilo ou então que aquilo que está sendo feito corresponde ao mínimo que se poderia esperar. Nestes casos, o que surge é um desencontro, que pode gerar conflitos e ressentimentos muito dolorosos a longo prazo.

UR: Por que o sentimento da gratidão é sofisticado e exige tanta maturidade de nós?

Antônia Campos: O sentimento de gratidão é uma conquista emocional e, por isso, digo que é um sentimento sofisticado. Dito de outro modo: a gratidão não nasce de forma natural em nós. Não é um sentimento que vem de fábrica. Ele pode, no melhor dos cenários, ser alcançado. Quando somos pequenos, não conseguimos ver as pessoas como um todo. Dividimos elas em duas categorias: boas ou más. É como nos contos de fadas: de um lado estão as bruxas e os monstros e, do outro, estão as fadas e os heróis perfeitos. Essa divisão ajuda as crianças a organizarem o mundo no começo da vida. No entanto, conforme crescemos, é esperado que possamos ir descobrindo que a realidade é bem diferente: a mesma pessoa que nos cuida e nos dá carinho também pode nos frustrar ou ferir. Reconhecer tudo isso não é simples. Exige maturidade para lidar com as ambivalências. Aceitar que ninguém é só bom ou só mau (incluindo a nós mesmos) é um grande desafio. E é justamente nesse ponto que a gratidão tem a chance de aparecer: quando conseguimos ver a complexidade do outro, compreender suas limitações e, ainda assim, valorizar o que recebemos dele. A gratidão não se desenvolve somente a partir do quanto o outro nos entrega, mas principalmente do quanto conseguimos absorver daquilo que o outro nos entrega. Há pessoas que recebem muito, mas pouco conseguem transformar em algo próprio; e há aquelas que recebem pouco, mas desse pouco conseguem extrair muito. É como na construção de uma casa: algumas, com poucos tijolos, erguem uma estrutura inteira; outras, mesmo com muitos tijolos à disposição, não conseguem levantar mais do que uma pilha desordenada. A capacidade de sentir gratidão, então, é uma conquista que não se alcança sozinho, mas sim no interjogo das relações com as pessoas, com a vida e consigo próprio.

UR: A partir dessa noção sobre o sentimento da gratidão, o que podemos dizer sobre a ingratidão? Por exemplo, quando a pessoa que se revela ingrata já está na idade adulta? O egoísmo atrapalha no amadurecimento para chegar ao sentimento da gratidão?

Antônia Campos: Excelente questão! Para comentar algo a respeito, começo lançando uma nova questão: o que significa, de fato, ser adulto? Pela lei, a partir dos 18 anos já somos considerados adultos. Na prática, a maturidade nem sempre chega ao mesmo tempo que o número do documento. Dentro de todos os adultos, em alguma medida, ainda habitam as crianças que um dia eles foram e que, eventualmente, ainda possam vir a ser. Não é raro encontrarmos pessoas crescidas que, diante da vida, se colocam em uma posição de queixa, como se o mundo tivesse a obrigação de lhes dar algo que não receberam em tempos passados. E veja, muitas vezes há razões reais para esse sentimento, especialmente em um país como o nosso, marcado por tantas desigualdades. Mas o que quero dizer é que, quando ficamos presos apenas nesse lugar de cobrança, é como se não abríssemos espaço para reconhecer o que também recebemos. É aqui que pode entrar o egoísmo: ele pode ser entendido como uma dificuldade em enxergar além das próprias necessidades imediatas. Esse olhar voltado só para si mesmo atrapalha o amadurecimento, porque impede de ver o outro em sua complexidade. E, sem esse passo, a conquista do sentimento de gratidão fica muito distante.

UR: Aprendemos que uma das maneiras de descrever um ato de generosidade é quando fazemos algo bom para alguém que não poderá nos dar absolutamente nada em troca. Ou seja, não há previsão alguma de um favor futuro, nenhuma forma de pagamento. No entanto, ao sermos generosos, muitas vezes, nós nos encontramos frustrados porque nos deparamos com o sentimento da ingratidão no outro. Isso vale para amigos, colegas e mesmo estranhos. É como se esperássemos, sim, algo em troca – um sentimento. Como podemos lidar, de maneira geral, com a ingratidão?

Antônia Campos: A ideia de que o ser humano faz algo sem esperar nada em troca é muito bonita, mas um pouco ingênua. Freud já nos alertava sobre o fato de que, mesmo quando acreditamos estar sendo totalmente altruístas, existe algum tipo de ganho envolvido. Às vezes, esse ganho está no prazer de ajudar, no alívio da culpa inconsciente que pode haver diante de algum privilégio ou até na construção da própria imagem de “alguém generoso”. O problema surge quando a expectativa é que o outro nos devolva algo em forma de gratidão. É aí que pode aparecer a frustração. Porque o outro pode não reconhecer, não valorizar ou até mesmo não ter atingido o desenvolvimento emocional necessário para conquistar a capacidade de ser grato pelo que está recebendo. E isso não significa que o gesto tenha sido em vão. Diante desse contexto, um caminho possível talvez seja não ficarmos reféns da reação da outra pessoa. Se escolhermos ser generosos, que o nosso ganho esteja no próprio ato. Que a busca de sentido possa ser encontrada mais do lado de dentro do que do lado de fora. Para concluir, talvez valha lembrar que a gratidão não é um dever nem uma obrigação. Ela não pode ser forçada. Precisa nascer de dentro. O que podemos fazer é cultivar em nós mesmos a capacidade de reconhecer tanto as dores quanto os prazeres encontrados nas nossas relações interpessoais. É um exercício de maturidade que nunca termina. A cada nova experiência, um novo desafio e um possível novo aprendizado.

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