ENTREVISTA

Paris de Bicicleta: Uma conversa com a guia Fernanda Hinke, especialista em passeios temáticos sobre duas rodas pela França

Por Clara Jardim

A paulistana Fernanda Hinke sempre quis morar em Paris, mas foi em um ano sabático no Canadá, em 2011, que redescobriu seu amor de infância pelas bicicletas. Após dez anos intensos trabalhando como lojista em São Paulo, deslocando-se de carro e usando sapato de salto no dia a dia, ela passou a explorar as ruas de Toronto sobre duas rodas. Nos trajetos, apaixonou-se pela arte urbana, e suas perspectivas de futuro mudaram para valer. Um ano depois, estava morando em Paris e trabalhando com turismo de street art em Belleville – um dos bairros mais artísticos da cidade. Foi quando idealizou um de seus maiores sucessos para turistas brasileiros: passeios noturnos de bicicleta por uma Paris mágica, iluminada – todinha de quem pedala. Desde então, a cada ano, milhares de brasileiros são conduzidos por Fernanda e seus guias auxiliares em parceria com a Paris Bike Tour; e a programação de passeios já se estende a viagens, também de bicicleta, pelo interior da França. Ainda, seu site de reservas* oferece passeios à noite para cadeirantes, visita noturna ao Louvre, pedaladas diurnas e piqueniques privativos.

Em conversa com a Uma Revista, a guia falou mais sobre sua trajetória, o empreendimento e a criação de uma associação que oferece atividades de ciclismo a públicos vulneráveis como imigrantes e refugiados.

*Devido à pandemia, os passeios estão suspensos por tempo indeterminado.

Clara Jardim: Onde a sua história começa?

Fernanda Hinke: Sou de Bauru, interior de São Paulo e, no Brasil, tive empresa, uma loja que abri muito jovem e na qual trabalhei por dez anos. Eu tinha uma vontade muito grande de viajar para fora do país, mas o trabalho nunca me permitia viver essa experiência. Em 2008, fiz um tour de um mês pela Europa, e metade da viagem foi em Paris. Tive experiências muito locais – não necessariamente boas, mas muito locais. Fiquei em um apartamento relativamente chique no Quartier Latin, só que não tinha chuveiro! Hoje em dia, 95% dos apartamentos têm chuveiro, mas não era uma realidade até os anos 50. As pessoas tomavam banho em sauna pública e tal. E aquele apartamento não passou por nenhuma reforma. Nessa época, tive contato com franceses, um aprofundamento maior na culinária francesa, na cultura, e me apaixonei muito. Fui embora sentindo no fundo do meu coração que era o meu lugar e que, um dia, eu moraria aqui. O apartamento cheirava a mofo e a queijo, mas eu fiquei com saudade daquele cheiro de queijo (risos)! Em 2011, fui para o Canadá, onde passei um ano sabático. Depois disso, vim para cá e logo comecei a trabalhar com turismo.

Clara Jardim: Como o turismo entrou na sua vida?

Fernanda Hinke: Bom, eu saí do universo da moda… E sempre tenho que tomar cuidado para falar porque, pessoalmente, eu me decepcionei muito com esse universo, que tem o seu valor, inclusive artístico. Mas me decepcionei com toda a questão da frivolidade, do consumo. Até mesmo descobri que eu tinha fornecedores em São Paulo que trabalhavam com mão de obra escrava boliviana. Foi uma série de decepções que fui tendo com esse universo, a questão da estética e tudo mais. Então, eu estava muito aberta para descobrir o novo no meu ano sabático. O que acontece é que eu fui uma menina muito rueira na adolescência; andava de patins e sempre tive uma vertente mais alternativa. A moda me colocou em um caminho mais superficial, vamos dizer assim. Acho que, no ano sabático, eu reencontrei a minha essência, e a reencontrei através da bicicleta! No Brasil, tinha carro e andava de salto; às vezes, a gente usa carro até para ir à padaria que fica perto de casa. Tem a questão da segurança, mas somos muito carrocratas no Brasil, e nem havia um sistema de transporte público na minha cidade que possibilitasse ser diferente. Ao chegar no Canadá, queria explorar. Então, a bicicleta foi uma ferramenta fundamental para eu me locomover. Sabia que eu estava em um local seguro, que eu iria me perder e, dessa forma, conheceria um monte de lugares. A primeira coisa foi a adoção da bicicleta, que me reconectou com a minha adolescência e me abriu o universo da street art – um universo que você vive e percebe quando está na rua. E eu estava na rua o tempo inteiro! No Canadá é um pouco como nos Estados Unidos, as casas têm a entrada da frente, com jardim, pedestres e tal e, atrás, há aqueles becos onde ficam as garagens e latas de lixo. Não é tão bonito, mas você pode circular por ali também. Com a bicicleta, eu tinha o hábito de circular pelos becos e era lá que eu via muita street art, muito mais do que na parte frontal. Havia essa minha decepção com a moda e a publicidade, que usavam o espaço público para seduzir as pessoas a comprarem, mas eu passei a observar esse espaço sendo explorado de outra forma; através do spray, da lata, da cor, do desenho. E isso não estava estimulando as pessoas a consumirem nada, pelo contrário. Estava acessibilizando a arte. Você pode ter contato com ela sem precisar ir ao museu. Então, comecei a pesquisar sobre esse movimento. Hoje, quando a gente fala de grafite, é mais aceitável. Mas, na época, era vandalismo puro. Eu me interessei pelo que levava as pessoas fazerem aquilo. Então, a bicicleta e a street art aconteceram muito juntas. Mantive um blog sobre o assunto, pois me interessava muito. Em Paris, comecei a trabalhar com tour de arte urbana. Só na cidade, há mais de 150 museus; é um lugar onde você respira arte o tempo inteiro, não só nos museus e galerias, mas na própria arquitetura. No entanto, a street art era um nicho muito específico; não justificaria eu viver na França. Foi quando eu comecei a trabalhar com o turismo de bicicleta, e foi uma explosão! Não que seja uma coisa nova, já existe há muito tempo, mas foi algo bem novo para o público brasileiro.

Clara Jardim: Você tem muito conhecimento em Arte, Turismo e Paris, três assuntos vastos. Como absorveu tudo o que sabe?

Fernanda Hinke: Sou muito autodidata, sempre fui. Minha formação no Brasil foi Publicidade e Propaganda, depois fiz um MBA de Marketing em Moda, mas não concluí a fase final. E é isso o que tenho de formação específica. Aqui, gosto muito de ateliê. Então, de tempos em tempos, faço um ateliê! Fiz um no próprio museu do Louvre, que era um curso sobre História da Arte, mas minha formação não é acadêmica.

Clara Jardim: Ser autodidata também é mergulhar de cabeça em algo que se ama, né? Lemos de tudo, buscamos conversas, experiências e vamos nos especializando. É único porque só a gente sabe a rota que fez para chegar a determinado conhecimento…

Fernanda Hinke: Exato! Você sabe que o meu conhecimento com street art foi exatamente isso. Uma imersão em leituras online e offline, as entrevistas que tive oportunidade de fazer com artistas. Já o turismo foi meio sem querer. Claro que, como tive minha empresa própria por dez anos no Brasil, eu já tinha um background e know-how de administração. Mas o passeio de bicicleta, inclusive a forma como foi criado, foi muito espontâneo. A mãe de um amigo participou da reforma de um museu, e haveria uma festa para comemorar a reabertura. Só que ela não estava na cidade, então, entregou os convites para o filho e a nora, e eles me convidaram para ir junto. Era uma festa superchique, em um bar em frente à Torre. E falei: “Ok, eu vou, mas com a minha bicicleta”, pois continuei com a mesma lógica do Canadá. Coloquei meus scarpins na cestinha da bike e fui pedalando com minhas sapatilhas. Quando a festa acabou, tive de voltar, e foi nesse momento que vi a cidade noturna, vazia! Olhei para aquilo tudo e pensei: “Essa Paris aqui ninguém aproveita, todo mundo está dormindo!” Porque Paris não é necessariamente uma cidade que tenha uma vida noturna, principalmente na parte turística, sabe? É uma cidade onde há muitos restaurantes, mas que fecham cedo. Óbvio que, para quem é daqui e conhece melhor, sim. Mas não é uma cidade muito noturna para turistas, não. Fazia meses que eu estava aqui, já tinha pedalado por tudo, e nunca tinha visto a cidade naquele horário. Fiquei maravilhada.

Clara Jardim: E como nasceu o Meia-Noite em Paris?

Fernanda Hinke: Quando você mora em uma cidade tão visitada como Paris, acaba sendo o contato de muitos amigos que estão vindo passear. Esses amigos vêm e depois passam o seu contato para os amigos deles, que passam para outros amigos. Eu até topava levá-los para passear, era um prazer… Mas já dizia: “Olha, eu não gosto de ficar andando de metrô; gosto de bicicleta. Se quiser, eu pego uma bike pública para você no meu cartão e a gente vai passear!” E todo mundo achava o máximo quando eu propunha isso. Então, eu falava: “Mas à noite, porque o trânsito durante o dia é meio chato… A gente vai à noite, compra uma champagne, que aqui é acessível, e toma na frente da Torre Eiffel!” As pessoas ficavam loucas! Fiz isso com amigos e amigos de amigos por um bom tempo, mas ainda não tinha pensado que isso podia ser um trabalho (risos)! Era um lazer. Lembro que mandei e-mail para mais de 50 agências de turismo entre França e Brasil para divulgarem o meu tour de street art, e ninguém me respondeu. Só a Lina, que é a fundadora do Conexão Paris – o maior site de referência sobre a França para brasileiros, não só no quesito turismo, mas antropológico, social. Ela achou a ideia incrível, jovem e alternativa. Falou que divulgaria, mas foi muito sincera ao me dizer que não daria para eu viver só disso. Seria apenas um começo, então comecei. Certo dia, contei do meu hábito de levar as pessoas para passear de bicicleta à noite, e foi aí que a Lina me disse: “Nossa, Fernanda! Essa ideia é fantástica; isso será algo muito novo para o nosso leitor.” E ela estava coberta de razão.

Na época, os blogs funcionavam muito. A cada post, o blog do Conexão Paris recebia cerca de quinhentos comentários. Hoje, isso acontece no Instagram. Naquela mesma semana, recebi mais de 50 e-mails de pessoas que estavam em Paris ou vindo para cá e que queriam fazer o passeio comigo. Da noite para o dia, começou. Era uma loucura! Eu não tinha estrutura nenhuma, pegava as bicicletas públicas com o meu cartão, mas dava certo e todo mundo gostava. Dois meses depois, eu já não dava conta de atender todo mundo sozinha e tinha uma amiga me ajudando. No final de 2013, encontrei os meus grandes parceiros, somos praticamente sócios. É a empresa Paris Bike Tour. Eles utilizam a infraestrutura durante o dia, e o Meia-Noite em Paris utiliza à noite. Então, explorar a Paris mais clássica foi muito inovador, não só pelo fato de ser de bicicleta, mas por ser um passeio noturno, que começa às 22h e vai até 1h da manhã. É o momento em que a cidade está vazia, quase não há barulho. E é a cidade luz, então você tem uma iluminação toda especial. A proposta desse passeio específico – que é a maior parte do nosso faturamento – é estarmos em frente à Torre Eiffel estourando uma champagne à meia-noite, quando ela pisca. Desde o início, foi um sucesso muito grande, nunca mais parou. Uma média de 1500 a 1800 brasileiros por ano fazem esse passeio comigo e minha equipe. Em 2020, obviamente, estamos confinados, pois é um ano particular, mas sempre bombou muito.

Clara Jardim: Quantas pessoas trabalham com você?

Fernanda Hinke: Depende da temporada. Tenho um equipe de colaboradores; geralmente cinco ou seis pessoas. Nos passeios, dois guias para um grupo de até 18 pessoas. Se saímos com dois grupos, então quatro pessoas da equipe trabalham no mesmo passeio.

Clara Jardim: Além disso, você oferece viagens de bike…

Fernanda Hinke: Crio um passeio novo a cada ano e, além dos tours de algumas horas pela cidade, fui convidada pelo Conexão Paris a abrirmos uma empresa com o foco em viagens de bicicleta. Assim, o site Conexão Paris Viagens surgiu. Desde 2016, organizamos viagens que podem ser um bate-volta ou durar de três a cinco dias, dependendo da região. São híbridas, pois partimos de trem para o interior, que é muito bonito e diverso. Vamos ao Vale do Loire, que é a região dos castelos; são 300 castelos concentrados ao longo das margens. Vamos à Borgonha, que é a região dos vinhos. Temos um bate-volta para Giverny, onde visitamos os jardins de Monet. Também propomos uma viagem percorrendo a região de Bordeaux que, em vez de você ficar mudando de hotel todos os dias, o nosso hotel é um barco. Navegamos com ele e, durante o dia, fazemos os passeios de bicicleta. Para esse ano, eu havia desenhado uma grande viagem às praias do desembarque, no Norte da Normandia; já estávamos com o grupo fechado. Ia ser uma viagem de seis dias com esse foco na Segunda Guerra Mundial. Mas, com a pandemia, tudo foi cancelado.

Clara Jardim: E como faz para administrar tudo isso?

Fernanda Hinke: Menina, não é tanto assim (risos)! O que acontece é que sou muito independente. Meu escritório é em casa. E a minha vida, de uma maneira geral, é um mix de tudo, desde quando eu tinha loja. Nem sei dizer se isso é positivo ou não. Eu não sou uma pessoa que trabalha de segunda a sexta, das 9h às 18h. É tudo misturado; talvez não trabalhe na sexta, mas terei de trabalhar o dia inteiro no domingo. E em todas as minhas viagens, mesmo nas de lazer, estou sempre de olho no que posso desenvolver a partir daquilo para o turismo. Não tenho essa divisão do que é trabalho e o que é lazer na minha vida, sabe? Como trabalho com coisas leves, pois estamos falando de história e gastronomia, esse mix da minha vida profissional e pessoal não é tão grave. Não acho que eu trabalhe mais do que todo mundo, mas não tenho essa coisa de horários. Se estou em um restaurante com as minhas amigas, está relacionado ao meu trabalho. É louco dizer isso (risos)! Às vezes, meu contador me pergunta sobre umas contas do supermercado. Eu respondo que o meu trabalho inclui levar os meus clientes no mercado, comprar queijos e vinhos locais e fazer um piquenique. Esse é o meu trabalho, ué (risos)!

Clara Jardim: Em quais passeios rola piquenique?

Fernanda Hinke: Em Paris, a gente tem o passeio diurno com piquenique, e funciona muito para famílias com crianças. Adoram! Normalmente, é um passeio privativo. Mas, nas viagens de bicicleta, em geral, todos os almoços são piqueniques. São cidadezinhas muito pequenas. E, embora seja o país da gastronomia, os horários dos restaurantes são super-restritos aqui na França, a gente faz piquenique durante o dia, quando estamos na estrada, no campo e tal. Vamos comprando os produtos nos lugares por onde passamos. E, à noite, a gente faz um grande jantar no hotel.

Clara Jardim: O Meia-Noite em Paris é um grande incentivador das possibilidades que a bicicleta traz para a vida das pessoas, não é?

Fernanda Hinke: Eu nem gosto da palavra turismo, que a gente associa ao turismo de massa, que deteriora os espaços… Por isso, gosto da bicicleta! Pois é mais respeitosa e, além de fazer bem para o meio ambiente e liberar endorfinas, a bike permite uma real inserção no local. Já no metrô, a gente perde muito do funcionamento da cidade. Paris, por exemplo, é pequena. Só que, se você fica fazendo as coisas de metrô, não a compreende. No fim das contas, os monumentos do Centro Histórico são bem concentrados, você consegue ver tudo em uma noite. Tanto que faço questão de, depois dos tours, pegar o mapa e explicar o que fizemos para as pessoas. É um estímulo para perceberem a bicicleta de uma forma diferente quando voltam para a sua própria cidade. Grande parte do meu público não anda de bike; só usa porque está viajando e acha legal. Esse é um lado que gosto muito no meu trabalho; é quase um lado ativista, de plantar essa sementinha da bicicleta na vida das pessoas. E a pandemia está aí para justificar. Aqui em Paris, houve um aumento de 30% nas vendas durante a quarentena. Em maio, não havia mais bike para comprar, tudo havia acabado. Nas lojas, fila de espera de meses por uma bicicleta, pois foi uma ferramenta importante para evitar o transporte público e diminuir a contaminação. Você vê o poder dessa máquina tão low-tech, barata e acessível!

Clara Jardim: O seu site de reservas também oferece a visita noturna ao Louvre. Como funciona?

Fernanda Hinke: No Louvre, eu trabalho em parceria com um guia brasileiro, Danilo Lovisi, que é formado em História da Arte pela Escola do Louvre. Para guiar dentro de museus, em Paris, você precisa ter uma formação específica, não pode ser qualquer pessoa. A gente chama de guia conferencista, e o Danilo é o guia conferencista que trabalha com a gente, com o plus de ter sido formado pela própria Escola do Louvre. No final de 2018, o museu passou a ter uma abertura noturna duas vezes por semana, então surgiu a ideia de oferecer esse passeio, pois é quando o Louvre está mais vazio e tem uma iluminação mais específica. É um museu no qual você poderia passar três meses, pois é muito grande. Durante o dia, os passeios são longos, de três, quatro horas. É lotado. À noite, a visita é mais dinâmica, de duas horas, mas é superagradável, justamente por conta da iluminação e tudo mais. Das 19h30 às 21h30.

Clara Jardim: Vamos falar um pouquinho da Paris misteriosa e até sinistra. Afinal, é uma cidade que acontece em cima de imensas catacumbas. Há histórias de festas secretas nos ossuários… Isso é verdade?

Fernanda Hinke: É verdade, eu já desci duas vezes… Vamos do começo, existe uma cidade embaixo de Paris, que é de onde tiraram as pedras para construir a própria cidade acima. Essas galerias subterrâneas existem desde o século XII, e foram aumentando. Com as guerras, não davam conta de enterrar os corpos no cemitério, então começaram a enterrar nas catacumbas. Jogando com essa questão do subterrâneo, houve a chegada do metrô, e nós temos o melhor sistema de metrô do mundo aqui. Então, de fato, existe uma cidade embaixo de Paris. E você tem as catacumbas turísticas, que é um pedacinho desse lugar. Um passeio bonito, organizado. Por entrarem poucas pessoas por vez, são filas de horas, mas atrai muita gente. À parte disso, existem essas galerias subterrâneas. As entradas são pela área do metrô ou por bueiros, literalmente. Bueiros que você abre e há uma escada para descer. Desde sempre, séculos… Há relatos dos iluministas, que iam lá e tudo mais. E ganhou fama com as festas da galera da Sorbonne nos anos 60 e 70. Faziam festas gigantes lá embaixo. Meio que deram uma interditada, mas isso continua até hoje. Chama-se Cultura Cataphiles, que são as pessoas que descem. Há quem desça com regularidade, mapeie e faça festa. Nas vezes em que eu desci, encontrei pessoas que já estavam há dias, semanas lá embaixo. Literalmente, zumbis, pois ficam sem tomar luz. Inclusive, já escrevi sobre isso no blog, pois eu chorei; dá medo, dá tudo. E é comum, quem mora aqui não se assusta tanto. Também é um templo de street art; não há nada mais underground, literalmente. Na primeira vez, desci para levar um artista de São Paulo ao encontro de um artista francês – dois grandes exploradores de subterrâneo, e fiz a ponto entre eles. É lindo e limpo lá embaixo, não tem nada de rato como algumas pessoas falam. O ar é diferente. Na França, tudo é muito calcário… Quando chove, entra um pouco d’água e vira quase um cristal. É um universo paralelo.

Clara Jardim: Nessas experiências, você desceu pelo bueiro?

Fernanda Hinke: Foi. Nas duas vezes. Isso é ilegal e, se a polícia pega, você leva multa – nada muito salgado, mas é ilegal. E é muito perigoso! Você só pode descer com pessoas que conheçam muito bem. Porque não tem luz, é um labirinto. Pode se perder e nunca mais ser achado. Então, normalmente, as pessoas descem em um grupo de, no mínimo, seis pessoas. E com alguém que conhece muito. Quem desce sem saber o que está fazendo é morte. Inclusive, não fiquei muito confortável na segunda vez em que eu desci… O cara não estava dando muita atenção e, em alguns momentos, o grupo se dispersava. Eu, como guia turística, sei da importância de manter um grupo junto, principalmente ali. Só que ele era um policial que conhecia o subsolo e descia de tempos em tempos, não era um guia turístico. Eu ficava desesperada quando se dispersavam porque, se perdêssemos alguém ali, já era. Então, é importante não estimular as pessoas a fazerem isso; é ilegal. Se a vontade de conhecer for grande, temos as catacumbas turísticas. Caso a pessoa desça ilegalmente porque quer muito, é preciso ter muita atenção em com quem vai, pois há risco de morte.

Clara Jardim: Voltando um pouquinho para a street art, onde tudo começou, esse tour pelas ruas artísticas de Paris deve ser lindo! Você tem obras prediletas?

Fernanda Hinke: É um passeio a pé por um bairro específico da cidade, mais alternativo e underground que se chama Belleville. Há uma introdução sobre o movimento em si, que nasceu nos Estados Unidos na década de 60. Na sequência, há a observação de aproximadamente 30 criações. A gente percorre as ruas e vou mostrando as obras, que podem ser institucionalizadas, ou seja, que foram feitas com autorização, assim como obras ilegais. Eu conto um pouco do artista, do que aquela obra está querendo nos dizer. Hoje, ainda tenho o passeio de street art no meu site para quem me contratar de maneira privada; faço o passeio com muito prazer, adoro. Uma das obras que mais gosto é o muro que foi pintado por Julien Malland, o Seth; e é um muro institucionalizado. Esse artista francês faz um trabalho muito interessante, colorido; retrata crianças e chama a atenção para a questão das crianças no mundo. Já foi ao Brasil e trabalhou em alguma favelas com street art. Esse muro é o pico do passeio, mas há diversas obras que gosto muito. Por exemplo, as do artista americano Shepard Fairey, o Obey. Tive a oportunidade de estar com esses artistas porque, além do passeio, eu mantinha o blog. Fiz entrevistas, reportagens, vídeos e fiquei muito próxima deles. É difícil escolher! Cada um tem a sua linha de trabalho – mais estética, poética ou política. Alguns nem têm uma estética tão interessante, mas têm uma mensagem forte. Acho que é uma das questões fundamentais da arte urbana que, por estar na rua, dá voz ao povo. Assim como existem obras que são pura e simplesmente uma estética interessante. Há um artista que se chama Diamond, e ele recupera espelhos abandonados na rua, corta-os em formato de diamante e cola nas esquinas. É lindo, superpoético.

Clara Jardim: Para a gente encerrar, conte um pouquinho da associação!

Fernanda Hinke: Meus parceiros da Paris Bike Tour e eu estamos trabalhando juntos na abertura de uma associação que visa oferecer atividades de ciclismo a públicos vulneráveis como imigrantes e refugiados! Aulas para aprender a pedalar, passeios culturais, oficinas de conserto. Através disso, queremos criar uma conexão de sociabilidade, aprendizado da língua, inserção profissional. Chama-se cycl’Avenir e, em breve, lançaremos o site.

Fotos: Filipe Xavier