ENTREVISTAS

Yuval Harari, autor de Sapiens, Homo Deus, 21 Lições para o Século 21 e o novo Sapiens em quadrinhos: “Se a crença em uma história causa sofrimento, é nociva. Melhor mudar a história”

Por Clara Jardim

Publicado em 18 de janeiro de 2021

Foi apenas algumas horas antes de Yuval Noah Harari embarcar para seu retiro anual de dois meses de meditação que eu o alcancei para esta entrevista. Com quase 30 milhões de livros vendidos em mais de 60 idiomas, o PhD em História pela Universidade de Oxford leciona na Universidade Hebraica de Jerusalém e reside em Israel – um lugar que chama de fábrica de mitos. Em 2020, lançou o romance gráfico Sapiens: Edição em Quadrinhos, assim como artigos sobre a pandemia, e foi, sem dúvidas, um dos pensadores mais requisitados para analisar avanços e atrasos da humanidade em tempos de Covid-19. Sua obra é recomendada por Barack Obama e Bill Gates, declarados admiradores, e levou milhões de leitores a refletirem sobre a história dos animais mais evoluídos que já existiram. Pode-se dizer que a sua credibilidade é para lá de disputada; ainda assim, o best-seller generosamente respondeu minhas perguntas e, prestes a celebrar o aniversário de 45 anos, abre 2021 com uma questão crucial: quão longe iremos por histórias fictícias?

Harari e seu cachorro Pengo, que resgatou das ruas Foto: Vicens Gimenez

Clara Jardim: Professor Harari, em um ano tão particular como 2020, qual é a lição ou aspectos interessantes que o senhor mencionaria em um capítulo sobre a pandemia?

Yuval Noah Harari: A pandemia da Covid-19 tem demonstrado o enorme poder da nossa ciência, assim como a fraqueza de nossa política. Tem sido uma vitória científica acoplada a um desastre político. Cientistas por todo o mundo cooperaram para identificar o novo vírus, conter sua propagação e desenvolver uma vacina. Graças a essa colaboração científica global, a humanidade tem mais ferramentas para lidar com a Covid-19 do que em qualquer pandemia prévia na História.

Infelizmente, políticos falharam em usar essas ferramentas com sabedoria. Um ano depois do começo da pandemia, nós ainda não temos nenhuma liderança global, nenhum plano global para conter o vírus, ou qualquer plano para lidar com a crise econômica.

Essa lacuna entre o poder científico da nossa espécie e a nossa incompetência política é extremamente preocupante. Lidar com a Covid-19 deveria ter sido um projeto político direto. É fácil entender que, enquanto o vírus continuar a se espalhar e a evoluir em qualquer país, nenhum país poderá se sentir a salvo. Ainda assim, nós falhamos em cooperar efetivamente. O que acontecerá quando a humanidade enfrentar ameaças muito mais complicadas, como colapso ecológico ou a ascensão da inteligência artificial?

Eu espero que nossa política alcance a nossa ciência, e que a humanidade aprenda a usar nossos imensos poderes sabiamente.

Clara Jardim: “Somente os nomes, formatos e tamanhos das nossas próprias pirâmides mudam de uma cultura para a outra.” Trabalhamos com uma construção constante, alguns de nós visam destruir, e há aqueles que não sabem o que estão tentando construir. Na sua visão, pelo que estamos lutando intrinsecamente enquanto tentamos construir nossas próprias pirâmides?

Yuval Noah Harari: A principal luta é distinguir realidade de ficção. Ficções são essenciais para a cooperação humana em qualquer escala – seja construir uma pirâmide, um hospital ou uma nação. Sem crença em mitos coletivos, todos os nossos sistemas iriam colapsar. Não haveria dinheiro, nem redes de comércio, nem estados, nem sistemas de saúde.

Então, não podemos simplesmente destruir todas as ficções. Mas nós precisamos lembrar que todas essas histórias fictícias são ferramentas que nós criamos para nos ajudar. Elas podem ser muito úteis ao unirem pessoas e possibilitarem a cooperação em grande escala. Mas, se começamos a tomar essas histórias por realidade absoluta, elas podem se tornar perigosas. Em vez de usarmos histórias para ajudar pessoas, nós começamos a sacrificar pessoas pelo bem das histórias.

Por exemplo, para jogar futebol, você precisa selecionar 22 pessoas que acreditem nas mesmas regras, apesar do fato de essas regras existirem apenas na nossa imaginação. Jogar futebol é muito divertido, mas se um hooligan começar a agredir fãs do time oposto, ele está levando a história a sério demais. Similarmente, para ter um país funcionando, você precisa que milhões de pessoas acreditem na nação, sua bandeira, sua moeda, etc., apesar do fato de todas essas coisas existirem apenas na nossa imaginação. Nações são uma invenção maravilhosa. Elas possibilitam que nos importemos com completos estranhos, provendo para a sua saúde, segurança e educação. Mas, se esquecermos que nações são histórias criadas para ajudar as pessoas, nós poderemos matar milhões de pessoas pelo bem da nossa nação.

Não devíamos jamais esquecer a diferença real entre entidades tais como seres humanos, e entidades ficcionais como nações. Se você escuta uma história, e você quer saber se o herói da história é uma entidade real ou uma mera ficção, você devia perguntar: “Ele pode sofrer?” Uma nação não pode sofrer, mesmo se perder uma guerra. Não tem uma mente, não pode sentir dor ou tristeza. Sofrer é, portanto, o melhor parâmetro para avaliar se uma história é benéfica ou prejudicial. Se a crença em uma história reduz o sofrimento, essa é uma boa história. Se a crença em uma história causa sofrimento, é danosa. Melhor mudar de história.

Yuval Harari é o autor de Sapiens (Edição em Quadrinhos): O Nascimento da Humanidade