#TBT ENTREVISTA

O navegador e best-seller Amyr Klink fala sobre o protagonismo dos dias: “Você não precisa ter uma vida maluca, de aventureiro para ter histórias interessantes”

Por Clara Jardim

Conhecido internacionalmente por suas travessias solitárias, Amyr Klink tem pilhas de histórias para contar. Foi aos 28 anos que, por cem dias, cruzou o Atlântico Sul em um barco a remo – isso mesmo, em 1984. Na Antártica, o veleiro Paratii chegou a ficar paralisado por sete meses e meio durante a invernagem, uma excursão que durou 642 dias. Ao fim da década de 90, o paulista já havia completado a circunavegação polar pela rota mais difícil, e repetiria o destino com uma tripulação de cinco homens, anos depois, em seu segundo veleiro, o Paratii II. Para onde iam os diários de viagem? Não raro, inspiraram o idealizador e construtor dos próprios barcos a escrever best-sellers como Cem Dias Entre Terra e Mar, Paratii: Entre Dois Polos e Mar sem Fim.

Hoje, aos 65 anos, Amyr não mudou de paixões: segue construindo elementos que viajem, sejam barcos ou parágrafos; mas essa não é a história de um Ulisses que navega enquanto a incansável Penélope o aguarda de volta. Pelo contrário, as mulheres da sua vida estão à bordo! Sua esposa, Marina Bandeira, é igualmente uma velejadora de sucesso, e as três filhas do casal foram ambientadas desde cedo nas aventuras náuticas da família – essa, sim, uma verdadeira Odisseia. Só para a Antártica, Laura e Maria Helena já foram sete vezes. Tamara? Nove. Em alto mar, as meninas Klink também escreveram diários e aprenderam a habitar a própria história – porque, a despeito das longitudes, viver sempre foi o maior projeto.

Velas içadas, cadernos abertos, um estreito de Drake no mapa… Sim, o nome Klink tem a ver com tudo isso, mas principalmente com o protagonismo dos dias: “O que tento explicar para as pessoas que conheço é que você não precisa ter uma vida maluca, de aventureiro para ter histórias interessantes.” E é sobre a lucidez de estar presente, de ocupar a própria prosa que Amyr conversa com a Uma Revista.

No clique de Hugo Takemoto, a família Klink: Helena, Tamara, Marina, Laura e Amyr

Clara Jardim: Muitas pessoas têm histórias incríveis para contar, mas não sabem comunicá-las. No caso dos livros publicados pelo senhor, além de relatarem grandes aventuras, são poéticos. De onde vem a facilidade para passar histórias adiante?

Amyr Klink: Sempre gostei de ler e escrever, e a leitura ajuda bastante. Acho que foi uma herança importante que recebi dos meus pais. Moraram em vários países, sabiam línguas. E cada um tinha o seu estilo – minha mãe tinha um jeito meio poético e irônico; o meu pai era extremamente conciso. Ele também falava o Farsi, que é a língua falada na Pérsia, muito complexa mesmo para quem tem formação árabe. De certa forma, enriquece a capacidade de escrever. Não sei se é genético, mas o fato é que nossas meninas, para a minha surpresa, escrevem muito melhor. A Tamara está terminando um novo livro. E é verdade, há pessoas que têm histórias lindas para contar, mas contam muito mal. Há quem tenha uma história sem muita relevância, mas que escreve muito bem e torna as histórias apaixonantes de serem lidas. Então, acho que fui feliz nesse ofício de escrever (risos).

Clara Jardim: As meninas eram incentivadas por vocês a manterem um diário, certo?

Amyr Klink: Elas tinham entre cinco e oito anos quando a Marina disse “chega de viajar sozinho, agora nós iremos juntos”, mas havia uma condição. Para viajarem com o pai, tinham de manter um diário todos os dias, como um dever de casa. Reclamaram no começo, “tô com preguiça”. Queriam brincar na neve, passear de botinho. Mas foi um dever que se transformou em um hábito regular, e acho que foi muito bom para elas. Já havia reparado nisso quando eu era moleque, mais ou menos aos 16 anos. Estava viajando pela Europa e não tinha dinheiro para ficar em hotel, então dormia no trem. E tive um acidente na França – o nosso trem atropelou um trator. Então ficamos dois dias parados na linha férrea esperando o conserto dos trilhos. Dentro do trem, havia crianças de duas escolas. Tinham de dez a doze anos, menores que eu. E fiquei impressionado porque, de repente, elas paravam de brincar e iam para as poltronas escrever um diário. Tinham um horário para isso, e os coordenadores as chamavam. Esse é um hábito que infelizmente não temos no Brasil. E acho que ajuda muito na capacidade de nos expressarmos… de maneira engraçada, concisa e correta. Essa história dos diários é muito interessante, e demorei um bocado de tempo para perceber a importância. O que tento explicar para as pessoas que conheço é que você não precisa ter uma vida maluca, de aventureiro para ter histórias interessantes. Tudo o que você viveu hoje, se ler a respeito disso daqui a um ano, vai ser muito interessante para você mesma. Todos os relatos de todas as pessoas são relevantes, é só uma questão de tempo. Você vai olhar para trás e dizer “nossa, que ano maluco”. Todo mundo terá uma experiência diferente e única.

Clara Jardim: Você fala muito sobre a necessidade de protagonizar a própria história em vez de apenas observar as histórias dos outros…

Amyr Klink: Essa questão do diário reforça muito isso. É bacana ler sobre outras experiências? É bacana. Ler ficção? Também. Mas é muito bacana quando você, pouco a pouco, vai escrevendo a sua própria história. Na navegação, a gente é legalmente obrigado a preencher um diário. É tradição. Todo mundo faz, por exemplo, por questões de astronomia, anotações meteorológicas… E foi através dos diários em todos os navios do mundo que se fundou o primeiro banco de dados global, acho que ainda no século XVIII. Todos os comandantes de navios do mundo registravam a direção do vento, a intensidade, a altura das ondas nos diários. E um tenente americano criou as pilot charts, que eram bancos estatísticos onde ele organizou essas informações por coordenadas – latitude, longitude e época do ano. Assim, foram descobrindo as variações sazonais das correntes, dos anticiclones… Curiosamente, o grande segredo dos portugueses em comparação a outras nações do século XV, XVI e XVII é que Portugal compreendeu os mecanismos climáticos do planeta. A passagem pelo Brasil era obrigatória no caminho para as Índias; não foi uma descoberta. E é incrível que uma nação pobre, pequena e ainda ignorante tenha percebido um fenômeno que nenhuma outra nação havia percebido antes. Com essa descoberta, que era um grande segredo de estado, Portugal se lançou em um empreendimento global sem precedentes na história da humanidade. Outras nações como os chineses talvez tenham percebido alguns fenômenos desse tipo. Os nórdicos, quando vieram para a América do Norte por volta de 1300 e 1400… Para você ter uma ideia, quando os noruegueses estavam ocupando a costa oeste da Groenlândia, eles atravessavam da Groenlândia para o Labrador – a Terra Nova – em menos de trinta horas. Por que não se estabeleceram? Não tinham um diferencial de força como tinham os europeus, na Idade Média, com as armas de fogo, com a pólvora. Havia receio dos confrontos com as tribos locais. Mas o diário foi uma descoberta muito interessante. Meu primeiro diário é difícil de entender, cheio de números e desenhos – às vezes, não dá tempo de você compor as frases inteiras, mas foi uma referência muito importante para que eu, depois, escrevesse o livro.

Clara Jardim: Você conta que levou muitos livros para ler durante a primeira grande viagem, e não leu nenhum, pois estava sempre ocupado. No entanto, o tempo inteiro isolado e, às vezes, até confinado. Em tempos de pandemia, mesmo as pessoas mais independentes podem se encontrar deprimidas e se sentindo à parte do mundo. Como se faz para não adoecer na solidão?

Amyr Klink: É muito interessante essa pergunta. Porque eu penso que a grande diferença que percebi entre o que eu passei em barcos e o processo que estamos vivendo agora é a questão da perspectiva. E, para a minha geração, é mais difícil. Reparei que as minhas filhas se acostumaram a administrar a vida através de uma telinha de vidro. Quando elas precisam estar presentes no escritório, ficam de mau humor (risos). Aqui, já estávamos em um processo de trabalho remoto desde 2019, pois eu brincava com a ideia de fazer uma nova invernagem na Antártica – adoraria. Nós temos a tecnologia, no entanto, a internet em alto mar é cara pra caramba – custa cerca de cinco dólares o minuto. Por termos a tecnologia, eu brincava com essa ideia de trabalhar a distância. Mas, hoje, temos uma quantidade tão brutal de compromissos, certificação, imposto de renda… São muitos compromissos nojentos (risos), não tem como escapar. E a pandemia é um baita desafio. A falta de ter um objetivo claro, definido, por mais distante que ele esteja na linha do tempo e do espaço físico, é muito ruim. Seja em um barco pequeno ou grande, por mais isolado ou confinado que possa estar, a cada dia, você está mais próximo do seu objetivo, e avidamente quer chegar nele. Também, no barco, a gente vive um estresse permanente pelo fato de ter que fazer tudo sozinho, de saber que o erro de uma manobra pode custar o barco, pode custar a vida. Essa visão de que tudo pode desaparecer em minutos, tudo o que se levou uma vida para fazer, assusta um pouco e educa um bocado. Quando você tem consciência da finitude, você também fica mais atento, focado e criativo.

Foto: Arquivo Pessoal

Clara Jardim: Vamos falar um pouco sobre mulheres na navegação… Como você as percebe em travessias solitárias?

Amyr Klink: Você age com mais prudência. Amigas navegadoras como a Florence Arthaud, a Ellen MacArthur, a Isabelle Autissier; elas são incríveis velejadoras em solitário, e muito melhores do que os rivais masculinos, considerados deuses da vela oceânica de alta performance. Eles tomam pau dessas meninas. Por quê? A mulher sendo fisicamente mais fraca que o homem, menos afeita a demonstrar bravura, ela age com muito mais inteligência. E essa atitude de você pensar antes de fazer, em um barco, é essencial. O cara que é metido a herói e a salvar a situação lutando contra a vela que arrebentou, ele vai se machucar. A desproporção de forças no barco é muito grande. Quando temos setenta nós de vento, um pedacinho de corda molhada balançando pode quebrar um fêmur, tamanha a violência. Estando sozinho, o velejador precisa ter o cuidado de saber que não pode se machucar, e de pensar em como irá acalmar aquela corda. Imagina o cunho de uma vela que tem o disco de aço ou um oitão que pesa um quilo e meio. Balançando no vento, esmaga um crânio em um segundo.

Clara Jardim: Quem é Rosa?

Amyr Klink: Eu aprendi muito com a Rosa, e o nome completo dela é Rosa IX. Fiquei muito impressionado quando conheci o dono dela, que era um pescador velhinho na praia de Santo Amaro, pelo amor que ele tinha pela canoa. Uma canoa grande, de dez metros de comprimento, de madeira de lei pesadíssima. E eu nunca tinha saído para o mar. Ele quis ir junto comigo e me disse: “A gente sai daqui, navegamos durante quatro horas sem ver terra até encontrar um montão de trigo”, e eu nem sabia o que era um montão de trigo. Ele tinha esse amor pela canoa. Fechei o negócio, mas fui sozinho no dia seguinte, e foi um terror. Duas, três horas sem saber se eu estava indo na direção certa, ia pela direção do vento. E, de repente, apareceu um triângulo no horizonte. Só podia ser o montão de trigo e, de fato, parecia que você tinha pendurado um saco furado e que o trigo formava um cone. E estava certo!

Clara Jardim: No seu livro Não há tempo a perder, há uma anedota sobre o tempo e uma janela quebrada. Antes de partir para a Antártica, você foi surpreendido pelo Bio, o rapaz que cuidava da casa. Mas não contou a ele sobre a viagem, apenas pediu que consertasse a janela quebrada da cozinha.

“Ele disse que era sexta, que iria pescar. Então no sábado, falei. Respondeu que tinha que ir para a igreja, no domingo também. Percebeu minha irritação e jurou, jurou pela mãe, que na segunda-feira a janela estaria consertada.” Então você retornou, quase dois anos depois. “Poderia estar voltando de uma ida ao centro de Paraty, mas desembarcava depois de 642 dias e 27 mil milhas percorridas, mais de 50 mil quilômetros. Nada havia mudado. Andei pela fachada e encontrei a mesma janela. Quebrada. Fiquei estarrecido. Bio só podia ter morrido. Fui andando até a casa dele, sem tirar as botas de neve que usava há 72 dias. Ele não estava em casa. Perguntei ao seu cunhado: ‘Reginaldo, onde é que está o Bio, ele morreu?’ ‘Não, senhor’, ele respondeu sorrindo, dizendo que o Bio tinha saído para pescar. ‘Mas porque ele não consertou a janela? Eu pedi faz quase dois anos!’ Com a maior inocência, e até certo ar de ingenuidade, ele tentou me explicar: — O senhor não vai acreditar, seu Amyr, mas é que não deu tempo!E o tempo pode ser traiçoeiro…

Amyr Klink: É engraçado como a literatura influencia a gente. Há um livro maravilhoso do Gabriel García Márquez, chama-se Relato de um Náufrago, sobre um caso real. É a história de um cara cujo barco naufraga no Caribe, e ele passa um período muito longo em uma balsa de salvatagem. O Gabriel vai narrando a luta do personagem – que, de fato, aconteceu – contra o relógio. O protagonista da história acabou ficando tão famoso que até fez uma campanha comercial do relógio que usava, essas idiotices aí (risos). Mas o livro é maravilhoso porque mostra a luta contra o tempo. Ele acaba brigando com o relógio porque sabia que o relógio marcaria o instante da morte dele. Ficou apavorado olhando para as horas, tentando fazer o tempo passar mais rápido. E eu aprendi a conviver com esses dois tipos de luta contra o tempo. Em 2020, por exemplo, a gente foi para a Antártica com o meu primeiro veleiro. Foi uma loucura porque é um barco de 30 e poucos anos de idade, que já era para estar aposentado. Barcos também ficam velhos e cansados. Aquele estava em ordem, mas pegamos um mar tão diabólico, tanto vento na cara o tempo todo que eu desejei que o tempo passasse rápido. E não passava. “Puxa, eu vou ter que atravessar todos os minutos de cada hora, e todas as horas de cada dia. E, daqui a cinco ou seis dias, a gente vai visitar o primeiro iceberg e, só então a gente vai chegar.” A segunda luta contra o tempo é na outra direção – o tempo que vai te alcançando e te perseguindo. Esse enfrentamento eu vivi na primeira experiência de invernagem, pois achei que eu era dono do tempo. Imagina, “tenho um ano só meu”, escrevi essas bobagens do diário. “Meu ano sabático”, e o escambau (risos). O tempo foi uma desgraça, me perseguia o tempo inteiro. Eu não conseguia fugir! “Meu Deus, desmontei o leme de vento em fevereiro; já é junho, o sol vai voltar daqui a três meses e ainda não botei ordem na caixa de ferramentas, nem fiz a revisão do aquecedor!” A cada dia, ia dormir mais tarde e acordava mais cedo, mas a vontade era de ficar dormindo igual a um urso. Então, temos esses dois aspectos. A gente não consegue acelerar o tempo, nem recuperar o tempo perdido. É um baita aprendizado, essa é a verdade. E não é uma observação exclusiva minha. Não há muitos brasileiros que navegam em solitário, mas os amigos que tenho fora do Brasil – França, Holanda, Austrália, Nova Zelândia – todos passam pela mesma experiência, o embate com o tempo.

Foto de capa: clique de Marina Bandeira Klink