Com MacBeth e Quem tem medo de Virgínia Woolf no currículo, Daniel Dantas aborda, neste dezembro, a obra fundadora do pensamento ocidental. Sob a direção de Octavio Camargo, Ilíada está em cartaz no Teatro PetraGold, no Leblon, e traz o ator de volta aos palcos justamente quando se trata do homem mais odiado do momento. Na pele de Túlio, o vilão de Um Lugar ao Sol, Dantas é um lobo que oscila entre o disfarce e o desaforo, ora acima de qualquer suspeita, ora abaixo de qualquer juízo, eternizando mais uma personagem na teledramaturgia brasileira.
Em entrevista à Uma Revista, ele fala sobre as gravações atípicas da novela, que só começou a ser exibida ao público quando se encontrava praticamente finalizada e, claro, sobre a experiência com os versos de Homero.

Foto: @callanga / Amarelo Urca
Clara Jardim: Pode compartilhar com a gente como foi o processo dos ensaios virtuais sob a direção de Octavio Camargo e a iluminação narrativa de Beto Bruel? É verdade que você estudou grego? Se sim, como isso impactou no trabalho no palco?
Daniel Dantas: Sim, mudou. Eu ainda estou muito no começo do estudo do grego, mas o pouco que já aprendi orientou muitas das escolhas que faço em cena. O Octavio foi um diretor e professor maravilhoso. E o estudo que comecei lá atrás, que eu continuo, com o professor Antônio Mattoso, é das coisas que mais me animaram e sustentaram na pandemia. Ensaio:
– Acho que vou sentar na poltrona, nessa hora.
– É? Eu vou ter que gritar minha fala, então.
– Eu sento na mesa, fico mais perto um pouco.
– Ótimo, que aí eu não preciso gritar e só falo um pouco mais alto. Vai ser até melhor.
– É. Valdeci! Dá pra trocar o 36 pelo 42 quando ela diz “não precisa gritar”?
– Dá, mas vou ter que descer aí pra reafinar o 42.
Ensaio é isso. Combinar umas coisas uns com os outros.
Claro que combinar à distância ou presencialmente é diferente. Mas há semelhanças. Nosso processo foi bem curioso, no entanto, imagino que muita gente que ensaiou remotamente viveu mais ou menos a mesma coisa. Eu fazia um vídeo falando o texto, ou o que sabia dele até aquele momento, e conversávamos. E isso é parecido com o que a gente faz quando em pessoa: passa o texto e conversa. A grande mudança foi depois, quando surgiu a possibilidade dessas apresentações ao vivo. No palco, as duas dimensões da tela do computador se dissolvem, o corpo volta a existir no espaço, e a luz dialoga com ele. Sem que a gente se desse conta, o ensaio virtual, pensado para a câmera, talvez tenha sido o que determinou que eu fique no mesmo lugar durante os quarenta minutos. Em alguns momentos, chegamos a pensar no narrador andando, ou em cenários diferentes, mas não desenvolvemos isso.
Clara Jardim: Dentro da sua mente e para fora dela, você está convivendo com Homero, Agamemnon, Aquiles, Júpiter, Minerva, Ulisses, Vulcano… Há personagens nos quais você é mais chegado? Se sim, por quê?
Daniel Dantas: Não tenho uma personagem preferida, acho. Gosto de todos igualmente, me divirto e sofro igualmente com todos eles. Porque, na verdade, eu tenho uma personagem só: o rapsodo. Só esse, o contador de histórias. Os outros são criaturas da imaginação do contador, enquanto as canta. Ele embarca nas personagens, mas só temporariamente. E volta a si o tempo todo. A viagem real é a do narrador surfando ou se afogando na linguagem. O rapsodo é o cavalo de Tróia da palavra, porque os muros de Ílio não são derrubados por quem os ataca de fora. Algumas portas só se abrem por dentro.
Clara Jardim: Restam duas apresentações de Ilíada (dia 18 e 19 de dezembro, às 20h) no Teatro PetraGold e, falando em teatro, você compartilhou uma mensagem muito bonita no Instagram sobre a imortalidade dos palcos. Mesmo com a precariedade que se enfrenta na viabilização de cada espetáculo, é simples: “A gente precisa de ator e gente assistindo, é difícil matar o teatro”. Para um ator, o que significa trazer uma peça do valor da Ilíada à vida no momento atual?
Daniel Dantas: É difícil responder a isso muito genericamente. Minha experiência com a Íliada, com os gregos em geral, é muito pessoal e antiga. Quando eu brincava sozinho, meus bonecos se chamavam Jasão, Teseu, Aquiles. Minha impressão é a de que todas as guerras que o mundo perdeu, porque ninguém ganha nada numa guerra, foram guerras perdidas na linguagem. A guerra maior, agora, é para revitalizar a linguagem. O que o hipernecrocapitalismo almeja não é reduzir o Estado ao mínimo; é destruir o valor da linguagem. Falar, ouvir, ressuscitar a língua, não desistir das palavras difíceis, das equações complicadas, do esforço para ouvir e entender, continuar tentando distinguir o verdadeiro do fake é o que nós mais precisamos pra não perder o combate. E é um combate pela sobrevivência da espécie, eu acho. Precisamos falar e ouvir. Falar e ouvir. E ouvir.
Clara Jardim: Com o desenrolar de Um Lugar ao Sol, você se tornou o homem mais odiado do país na forma do vilão Túlio. Só de ouvir a sua voz, telespectadores já ficam revoltados. Vamos fazer uma brincadeira? Como você descreveria Túlio se fosse responder como o próprio?
Daniel Dantas: Acho que o Túlio diria aos críticos: “Se não fosse tão chata, eu diria que a ingenuidade de vocês é quase engraçada. Eu não fiz as regras, eu jogo o jogo. E as regras são como são.” E aí viria a grande falácia: “Porque o homem é o que é, e sempre será: fundamentalmente egoísta. Se alguém é otário o suficiente para ser enganado, é inevitável que seja enganado. O homem é o lobo do homem.”
Clara Jardim: Túlio ainda vai trazer muitos dissabores a todos que ficarem em seu caminho, e deve ser muito bacana de acompanhar as reações do público a um trabalho tão bem construído. Como foi o processo de gravar por um método diferente das suas outras novelas, finalizando as gravações praticamente às vésperas da estreia e descobrindo as reações do público com a obra já fechada?
Daniel Dantas: Normalmente, gravar fora de ordem, como era comum, o capítulo 12 na segunda-feira; na terça, o capítulo 7; a cena 23 antes da 8, não me incomodava nada. Porque, mal ou bem, gravávamos um bloco por semana, e dava para manter na cabeça a ordem dos eventos, gravando 6 ou 8 capítulos fora de sequência. Mas, com as limitações da pandemia, as dificuldades de produção eram tais que, às vezes, foi preciso gravar cenas do capítulo 11 no mesmo dia em que se gravavam cenas do 90. Era impossível – para mim, pelo menos – saber do que se tratava no 27 e no 65 ao mesmo tempo. Eu vivia sendo salvo pelas continuístas: “Tetê, no 65 eu já me separei? Ou já voltei?” E, claro, é angustiante não poder melhorar na semana seguinte o que você não achou legal da semana anterior, porque já está tudo gravado, editado e sonorizado. Mas foi um trabalho delicioso, mesmo assim! Voltar a encontrar e conversar, de máscara que fosse, com Andréa, Mariana, Marco, Ana Beatriz e Ana Baird, Zé de Abreu, Fernanda Freitas e Fernando Eiras; conhecer Pathy de Jesus, Juan Paiva, Cauã, Alinne e Andréia Horta. Valeu a pena!