ENTREVISTA

Era uma vez em Nazaré: Entrevista com Maya Gabeira, sete vezes campeã mundial do Big Wave Surf Awards e duas vezes recordista do Guinness Book of Records

Por Clara Jardim

O que significa o nome Maya? Com diversas nascentes etimológicas, pode vir da palavra mayim, em hebraico, que significa água. E a surfista Maya Gabeira, no entanto, eleva água a patamares míticos. Sete vezes campeã mundial do Big Wave Surf Awards – o Oscar das ondas gigantes – e duas vezes recordista do Guinness Book of Records, a carioca tem uma longa história de ousadia e apoderação em cima das pranchas.

Uma história que começa em sua adolescência, no Rio de Janeiro

“Para mim, o mais sagrado é a minha família, os meus bichinhos, os meus amigos e estar com saúde.”
(Foto: Ana Catarina)

Ao passar por uma fase rebelde, a carioca decidiu morar com o pai, Fernando Gabeira, que sempre gostou de acordar cedo para nadar. Influenciada por essa disciplina e cansada, ao mesmo tempo, de ficar na areia enquanto o namorado surfava, Maya decidiu se aventurar no mar. Matriculou-se na escolinha de surf do Arpoador e modificou seu estilo de vida radicalmente – em vez de festas, despertador e foco. Havia seu histórico de asma, um desafio em qualquer esporte, e ela conta ter sido a pior do grupo nas primeiras aulas. Seria o fim da experiência? Não para Maya, que encontrara nas ondas uma paixão para a vida toda.

Aos 15 anos, foi à Austrália com o pretexto de fazer intercâmbio e aprender Inglês enquanto o surf já era o seu alvo secreto. De volta ao Rio, abriu mão das aulas presenciais no colégio, estudando em casa para realizar os testes e se dedicando ao surf de manhã e à tarde. Os pais não aprovavam o afastamento escolar e se preocupavam com o futuro da filha, mas o surf era uma força imparável, e Maya logo se mudaria para o Havaí atrás de novas experiências.

“De certa forma, eu me sinto sortuda por poder ter tido essa experiência ainda nova e por entender de maneira profunda que a vida acaba e que a nossa passagem aqui é curta”
(Foto: Ana Catarina)

Sua mãe, Yamê Reis, estava na retaguarda. Comunicava-se com a dona do hostel onde a filha morava na grande ilha e foi, aos poucos, compreendendo o apego da caçula pelo mar: ela era uma atleta agora, e imensamente focada. Não demoraria para que as duas se reaproximassem, tornando-se melhores amigas.

Entre os turnos como garçonete, a surfista então se apaixonou por ondas maiores… gigantes. Ela, que já performava em um esporte extremamente masculino, adentraria um mundo ainda mais machista onde, ao contrário dos homens, não tinha o mesmo direito de cometer erros para evoluir. Alguns nomes do esporte se empenharam em desanimá-la e cravar que apenas homens poderiam ser big riders. Enquanto isso, Maya se tornava a primeira mulher a surfar no Alaska, em Ghost Trees, na California, e em Teahupoo, no Taiti.

Clara Jardim: Diversos julgamentos machistas ainda não eram culturalmente desconstruídos como são atualmente. E, durante a sua ascensão no surf, estatisticamente sozinha, você teve de enfrentar muito preconceito. Melhorou?

Maya Gabeira: Realmente, sinto uma diferença muito grande no que diz respeito ao machismo, ao preconceito e à falta de oportunidades para mulheres. Há 10, 15 anos, era um ambiente completamente diferente. As críticas, a falta de apoio e as dificuldades ainda eram muito mais persistentes e difíceis do que são hoje em dia. Nós até temos o prêmio igual ao masculino atualmente. Muita coisa mudou, não só dentro da indústria como entre os atletas e as empresas e, também, na sociedade. É muito mais aceito. Já se normalizou o papel da atleta, da surfista feminina, de onda grande. Não existe mais o questionamento que existia na minha época, mais de pioneira, sobre o porquê de eu estar ali e se eu tinha capacidade para estar ali. Isso já não existe mais, e é uma grande diferença que eu sinto.

Na sequência, Maya iria ao encontro das maiores ondas do planeta na Praia do Norte de Nazaré, em Portugal.

Nazaré em dia de Swell: existe um canyon submerso à oeste da costa, com 210 quilômetros de extensão e 4.300 metros de profundidade
(Foto: Bruno Aleixo)

Mas é preciso explicar que lugar é esse, onde ondas podem registrar a altura de prédios, e swells se formam além das grandes tempestades. É que existe um canyon submerso à oeste da costa, com 210 quilômetros de extensão e 4.300 metros de profundidade. Uma vez que o enorme relevo é preenchido pela água, ondas ferozes disparam e se empilham, dando volumes de fama à Nazaré.

Em outubro de 2013, tratava-se de um pico em que big riders ainda eram desbravadores, e a segurança do esporte estava longe de cobrir o que cobre hoje. Maya estava lá, descendo seu paredão de 20 metros cuja parte superior pesava aproximadamente 144 toneladas. Foi quando caiu da prancha, quebrou o tornozelo, perdeu o colete ao ser atingida pela segunda onda e desmaiou. Os agravantes? Sua equipe havia perdido a comunicação por rádio, e coletes salva-vidas infláveis ainda não estavam disponíveis para todos os surfistas; uma experiência de quase morte que, com mais segurança e cuidados, não teria acontecido.

Após dez minutos de tentativas frustradas, Maya foi resgatada por Carlos Burle, seu então treinador, e ressuscitada na praia.

Clara Jardim: Você conta ter pensado que iria morrer naquele momento, e até aceitado. Ao mesmo tempo, naquele turbilhão de pancadas e falta de oxigênio, havia tristeza por deixar sua família. Voltando à vida, “vou comer sushi e beber café de novo”, um dos seus primeiros pensamentos. O que mudou na sua vida?

Maya Gabeira: Você ter uma experiência de quase morte tão nova, aos 26 anos, é algo bem profundo. Não é algo que a gente escolhe ter, por se tratar de um evento traumático. Mas, ao mesmo tempo, essa experiência te dá uma nova percepção da vida, uma nova perspectiva, novos valores. Ou realça os reais valores da vida, as coisas simples. De certa forma, eu me sinto sortuda por poder ter tido essa experiência ainda nova e por entender de maneira profunda que a vida acaba e que a nossa passagem aqui é curta. Então, aproveitar ao máximo. Sempre tendo uma boa consciência do que são os valores reais, o que vale de verdade, e com bastante gratidão por ainda estar aqui.

Uma das consequências do acidente foi a piora da sua hérnia de disco, por isso, a atleta passaria por uma reabilitação extenuante nos anos seguintes. De sete especialistas, obteve sete opiniões diferentes sobre a sua coluna e, duas cirurgias frustradas depois, convenceu um oitavo médico a fazer a fusão em uma terceira. Tão desafiador quanto a dor física foi ser novamente descreditada por surfistas com grande poder de influência no meio, inclusive entre patrocinadores – isso durante um período de grande vulnerabilidade emocional. Àquelas alturas, o medo da onda de Nazaré em si se revelava bastante opressivo para Maya, e o preço final do período pós-acidente foi um transtorno de ansiedade.

Clara Jardim: Sua mãe foi um grande porto seguro na luta contra a ansiedade. Como a família ajudou você a se reerguer nos piores momentos?

Maya Gabeira: Minha família é a minha base, minha estrutura. Sempre penso que a facilidade que tive para deixar o Brasil e seguir atrás de um sonho tão grande e incerto é porque eu sabia que teria para onde voltar. Aquela rede estava sempre ali. Então, em todas as dificuldades, eu sabia que tinha meu pai, minha mãe e minha irmã me apoiando, independente de eu ter atingido minhas metas ou não. Isso era muito importante. E, sem dúvida, minha mãe – a pessoa mais próxima, principalmente, nas minhas crises de ansiedade – foi alguém que estava sempre ali. Ela sabia quando eu precisava, pegava o primeiro avião e ia para onde eu estivesse. Segurava a minha onda e me ajudava a superar aquele momento. É alguém com quem eu conto e, quando eu precisar, ela vai aparecer, independente de onde eu estiver. É muito importante a gente ter essa sensação. Traz um conforto e uma paz de espírito para que a gente se exponha na vida e lute pelos nossos sonhos.

Nem assim, Maya conseguia desistir. Fez de Nazaré a sua casa e, em 2018, desceu uma onda de 20,8 metros – sendo esta a maior onda surfada por uma mulher até então, e devidamente registrada no lendário Guinness Book of Records. Foi em um dia excessivamente frio, depois de horas de espera e com um rádio já sem bateria. Mas calma aí que ela desbancaria o próprio recorde! Em fevereiro de 2020, surfou a maior onda do anoentre mulheres e homens. A altura? 22,4 metros – também registrados em seu segundo recorde no Guinness. Além dos prêmios da Liga Mundial de Surf (atualmente, a soma é de sete títulos mundiais para ela), o reconhecimento chegou em peso com a validação de equipes da Universidade do Sul da Califórnia, da WaveCo e da Scripps Institution of Oceanography, que meticulosamente estudaram diversas filmagens do swell para atestar o feito.

O primeiro recorde de Maya, em 2018. Confira aqui o vídeo do segundo recorde, em 2020!
(Foto: Bruno Aleixo)

Destaca-se que, por ser mulher, Maya quase não teve seu primeiro recorde devidamente reconhecido. Quando trocou mensagens sobre o assunto com autoridades do meio, a desculpa que recebeu se baseava na falta de recursos para o surf feminino – e boas doses de má vontade.

Neste ponto da linha do tempo, não é difícil imaginar a injustiça que isso representava. Tratava-se de uma arbitrariedade contra a mulher que, por anos, lutou para ser aceita e respeitada em competições de ondas gigantes, as quais só recebiam surfistas homens, galgando um espaço cultural árido enquanto ainda treinava para se provar em mares desconhecidos. A mulher que foi duramente criticada pelos que não compreendiam suas experiências da mesma forma que acolhiam deslizes masculinos. Que quase morreu no mar de Nazaré, e que passou por três cirurgias na coluna para voltar ao mesmo pico. A mulher que, na época, foi estigmatizada por um acidente enquanto não era a única pessoa, na história do surf, a passar por aquilo.

Acima de tudo, a mulher que voltou às ondas que a derrubaram, e as surfou. Batendo recordes, mas também batendo na tecla do ponto final quanto à questão que a acompanhou por tanto tempo: ninguém reputaria a respeito do que mulheres podem ou não realizar no esporte.

Quanto ao diálogo com o criador do XXL Big Wave Awards, foi a mãe de Maya quem tomou a dianteira, abordando a importância de inserir a medição das ondas surfadas por mulheres na divisão. Yamê chegou a receber uma resposta bastante impertinente de Bill Sharpe por e-mail – que dizia estudar uma medição feminina, mas gostaria de entender o tipo de onda que Maya gostaria de medir, já que caía em todas as grandes. Era preciso ter nervos de aço… Em último caso, restava homologar a onda do swell de 2018, mas a performance da atleta foi, sim, reconhecida em caráter oficial, depois de longos silêncios irreversivelmente fadados a muito barulho.

Hoje, a patroa da praia de Nazaré ainda mora no vilarejo com suas cachorras, Naza e Stormy e segue treinando com o alemão Sebastian Steudtner, seu parceiro de ondas desde 2017.

“Muita coisa mudou, não só dentro da indústria como entre os atletas e as empresas e, também, na sociedade.”
(Foto: Ana Catarina)

Clara Jardim: Naza foi adotada por você para ser uma cachorrinha de suporte emocional. Qual é a diferença de tê-la em sua vida? E como foi a chegada da Stormy?

Maya Gabeira: A Naza veio em uma fase na qual eu já queria muito ter uma companhia e a responsabilidade com um serzinho. Queria esse apoio emocional que um animal traz para a nossa vida. Ela veio logo depois de eu ter surfado a onda do meu primeiro recorde – foi como se eu estivesse me dando um presente (risos). E, logo depois, quis a Stormy, que tem uma personalidade bem diferente, muito ativa. Ela veio para completar, pois uma cachorra é totalmente diferente da outra. Mas a convivência é muito boa e faz muita diferença para mim. Tenho certeza de que a solidão não chega tão perto de mim aqui em casa porque eu tenho elas. A Stormy, por ser muito ativa, acaba sendo minha grande companheira de treino. Topa tudo! Corrida, mountain bike, praia… Ela está sempre disposta a ir treinar comigo, e isso é uma grande companhia.

Como a história continua? “Para mim, o mais sagrado é a minha família, os meus bichinhos, os meus amigos e estar com saúde. Ter uma boa qualidade de vida, estar tranquila. Ter paz de espírito. Sempre seguindo em frente, buscando melhorar e ser uma pessoa melhor”, afirma ela. Assim, trocamos epílogos por barcos, continuamos navegando e até voltamos ao começo, como uma história de ninar para tantas meninas: “Era uma vez, em Nazaré, uma garota chamada Maya.” E todas elas poderão saber o que o nome Maya significa.