ENTREVISTA

MMA, adrenalina, antijogo, competição entre as mulheres e mais em entrevista com Michelle Nicolini, oito vezes campeã mundial de Jiu Jitsu que é destaque no ONE Championship

Por Clara Jardim

Já pensou se existisse um álbum de figurinhas como o da FIFA, mas sobre as artes marciais? A estampa de Michelle Nicolini seria um cromo brilhante, daqueles raros de se conseguir. E o motivo é simples: ela soma oito títulos de campeã mundial, incluindo o lendário ADCC Submission Fighting World Championship, além de ser destaque do MMA no ONE Championship.

Hoje, a lutadora paulistana é uma personagem indispensável entre as brasileiras que fizeram história no esporte, tendo aberto o caminho para muitas mulheres que vieram depois dela e extraindo o melhor da sua experiência para ensinar as novas gerações.

Afinal, o que pensa a dona do triângulo mais temido no Jiu Jitsu brasileiro?

Confira uma conversa sem rodeios, com Michelle respondendo à Uma Revista sobre a transição para o MMA, a filosofia como professora, as lutas mais marcantes e a sua postura assertiva como competidora.

Clara Jardim: Você conta que, desde pequena, gostava de competir. O que te cativava nisso?

Michelle Nicolini: Esse gostar de competir é você estar treinando e, então, querer se testar. “Será que eu estou aprendendo? Será que eu sou boa?” Ainda quando praticava esportes na escola, eu estava sempre em algum time e competindo. Então, fui para a Capoeira, pois queria aprender uma luta. E, 20 anos atrás, não existiam muitas competições. Na época, o esporte mais popular era o Judô, e o Jiu Jitsu estava crescendo.

Clara Jardim: A sua família dava apoio?

Michelle Nicolini: Os meus pais me apoiavam e, ao mesmo tempo, não botavam muita fé porque eu ia mudando de esporte. Achavam que eu ia começar e parar. Quando fui persistindo e ficando mais envolvida com o Jiu Jitsu, sempre me apoiaram. Pagavam a inscrições dos campeonatos e me ajudaram muito no processo todo. Eu trabalhava meio período, estudava na faculdade e treinava. Falei a eles que iria trancar a faculdade para só focar no Jiu Jitsu. Eles respiraram fundo e me apoiaram. Prometi que ia voltar para a faculdade depois, mas só voltei a estudar alguns anos atrás (risos).

Clara Jardim: E como os seus pais reagiram com você no MMA?

Michelle Nicolini: Quando eu decidi migrar para o MMA, eles acharam que a adrenalina de me assistir lutando era maior; adoraram. Minha mãe fica nervosa, mas ela gosta de me ver. E o meu pai sempre falava para todos os amigos dele quando eu iria lutar.

Clara Jardim: Como você lida com o fato de ser referência para muitas pessoas?

Michelle Nicolini: Eu gosto quando as pessoas tiram de mim algum tipo de inspiração, pois eu sempre fui muito dedicada. Também, sempre fui privilegiada no Jiu Jitsu, pois é um dom você saber lidar com a adrenalina da competição e tudo o que o esporte envolve. Eu gosto quando fico sabendo que as meninas estão se inspirando em mim. Acho que, para a gente ser referência (não exemplo), é uma responsabilidade grande, mas estou sempre fazendo o melhor que eu posso. E que seja assim por um longo tempo.

Clara Jardim: Com todas essas meninas olhando para você, o que você pensa sobre o futuro feminino no Jiu Jitsu?

Michelle Nicolini: Já cresceu demais. Eu estava falando com algumas amigas sobre o Jiu Jitsu ter evoluído demais desde que eu comecei a lutar. Fui treinar com mulheres faixas pretas quando eu já era faixa preta. Antes disso, não. Hoje, no entanto, faixa branca treina com faixa preta muito facilmente. É acessível. Em qualquer tatame, há duas ou três meninas treinando. Eu gosto muito de treinar com mulheres e, se eu pudesse, só treinaria com mulheres, sem desmerecer os meninos que me ajudaram durante toda a minha carreira de lutas e que ainda me ajudam. Mas é muito bom você treinar com meninas que tenham a força justa; tamanho e peso proporcionais. Me dizem: “As meninas pequenininhas já assistem aos seus vídeos, querem ser iguais a você, à Mackenzie, à Letícia, à Bia…”, e isso é prazeroso. De onde estamos, só vai para frente. Não tem mais como voltar.

Clara Jardim: Qual é a sua filosofia como professora?

Michelle Nicolini: Olha, eu tento sempre passar para as minhas alunas que elas estejam felizes ao fazerem o que elas se propuseram a fazer naquele dia ou naquela noite do treino. Se é para sair de casa, saia com vontade de treinar, de conversar com outras pessoas! E eu coloco para elas a realidade. Gosto de ensinar o que sempre funcionou para mim e o que eu vejo que está funcionando para outras meninas. Não fico elogiando só para levantar o ego de ninguém e sou até um pouquinho dura quanto a isso. Pois, ao mesmo tempo em que é bom ter um grande número de mulheres e meninas treinando, o ego infla muito rápido, principalmente em turmas femininas. Há uma oscilação de hormônios todo mês, e eu fico de olho.

Clara Jardim: O ego inflar é começar a ganhar das outras meninas e achar que é invencível?

Michelle Nicolini: É. Eu não tenho alunas assim no momento, mas sempre aparece. É aquela que vai à academia achando que é o campeonato mundial. As pessoas que mais conquistaram são as mais humildes. As que têm o ego mais elevado geralmente não saem da academia. Mas eu tenho muita sorte! Em todos os lugares onde dou aula, as pessoas são muito educadas e respeitosas. Não tive problemas desse tipo.

Clara Jardim: Uma postura assertiva faz a diferença, né?

Michelle Nicolini: Acho que isso vem muito com a nossa experiência. Às vezes, me perguntam se eu já sofri algum assédio. Não sofri. Mas, às vezes, a gente precisa sair de fininho, dar uma risada ou já chegar e falar que não gostou. É por isso que é bom ser experiente. A gente vai tirando essas coisas do caminho.

Clara Jardim: Existe uma diferença entre a competitividade saudável e a competição feminina que pode ser nociva. Como você lida com isso?

Michelle Nicolini: Já tive muito contato com meninas competidoras. Hoje, nos grupos para os quais eu dou aula (dois em São Paulo e um no interior), as meninas não têm essa competitividade, pois ainda estão aprendendo. Mas eu já morei com atletas que, hoje, são do alto rendimento. E, às vezes, é bom; outras vezes, isso acaba atrapalhando. Porque você deixa de treinar em um lugar prazeroso, onde você quer evoluir. Acaba pensando: “Hoje, eu não posso ser finalizada” ou “hoje, eu não posso perder para a fulana”. Então, você regride 50 passos a cada treino. Porque você fica cobrando a si mesma, e o Jiu Jitsu é um xadrez de quem faz a melhor jogada. Há dias nos quais você vai ganhar de todo mundo, e há dias que não. Digo que o Jiu Jitsu é como uma seleção natural. Só vai ficar no grupo aquele que se identifica. Senão, ele irá para outras academias. Quando há uma pessoa que não está indo de acordo com o grupo, ela fica meio de lado. Ou as pessoas não gostam de treinar com ela, e ela acaba indo para outro lugar. Por exemplo, eu treino na Escola Demian Maia, e não existe ninguém lá com quem eu não goste de treinar. “A sua vibe atrai a sua tribe”. Quando envolve os alunos, o professor tem de ficar atento para não deixar aquela maçã podre contaminar todos os outros. É preciso conversar e colocar aquela pessoa no lugar dela.

Clara Jardim: Já teve a experiência de rolar em um treino ou lutar em uma competição com alguém que está fora do contexto? Como você lida quando existe uma má intenção?

Michelle Nicolini: Já aconteceu. Hoje mesmo, eu estava falando com um amigo sobre ministrar seminários fora do Brasil. Ficamos ensinando por duas, três horas seguidas de aula; isso suga uma energia da gente. Chega ao final do seminário, a pessoa ainda quer treinar com você. Eu não rolo mais ao fim dos seminários. Muitas vezes, acontecia das pessoas quererem rolar comigo e me testar. Então, não rolo mais. E isso já aconteceu em treino também. Se sinto uma maldade, penso: “Olha, não precisa tanto… Se você vai machucar, eu também sei machucar”. Outra coisa que conta muito é a experiência. Eu fico muito cabreira de treinar com quem eu não conheço. Até com mulheres que eu não conheço, exatamente por isso. Não quero ter lesões. Então, já aconteceu algumas vezes de sentir um pouco de maldade, sim. E eu só penso: “Tomara que eu não escape daqui, porque se eu escapar… (risos)”.

Clara Jardim: O seu triângulo é lendário. Inclusive, foi um dos destaques na sua vitória contra a Kyra Gracie. Qual é o segredo do triângulo Nicolini?

Michelle Nicolini: O triângulo é um golpe que eu uso muito (risos). Muita gente me fala: “Ah, eu tenho a perna curta, não consigo fazer triângulo”. Gente, isso não é verdade! Eu tenho as pernas curtas, e fica mais justinho! Acho que, para ficar bem justo mesmo, você precisa tentar aproximar um joelho do outro. E segurar! Não pode ficar arrumando. Quanto mais ficar arrumando, mais a outra pessoa vai dar aquela respirada, tomando um pouco mais de gás para continuar na defesa. Quando fecho o triângulo, eu dificilmente abro. Tento fazer o máximo de pressão. Sempre que você está em uma finalização, a pessoa vai se debater por uns segundos para escapar. Você precisa manter a calma e, depois disso, apertar mais um pouquinho (risos).

Clara Jardim: Como você se concentra antes de uma luta?

Michelle Nicolini: Primeiro, medito e pratico respirações. Às vezes, até durmo um pouco antes da luta. Ficar muito sonolenta é uma forma de adrenalina. E o meu treinador fica cuidando o horário. Então, faço as respirações para acordar o corpo e me conectar. Antes de lutar, eu também gosto de rezar; peço a Deus que eu não me machuque e que eu consiga desempenhar bem. É uma mentalização do que vai acontecer na luta. Penso nela do jeito que eu quero que aconteça, e vou para ela desse jeito.

Clara Jardim: Você consegue chegar ao ponto de limpar os pensamentos com essa meditação antes da luta?

Michelle Nicolini: Consigo. Às vezes, até coloco uma música. Mas eu não gosto muito de rap etc. É mais uma música clássica.

Clara Jardim: Você tem uma religião específica?

Michelle Nicolini: Sou católica. E sempre peço a Deus saúde e proteção!

Clara Jardim: Quando entrevistei o Cesar Cielo, ele compartilhou que tem muito carinho por uma medalha de prata por causa do significado que teve no dia, apesar dos recordes e das medalhas de ouro. Tem alguma prata que secretamente ocupa um lugar especial na sua memória?

Michelle Nicolini: Olha, eu gosto mesmo é de primeiro lugar (risos)! Mas, sim. Houve uma luta com a Letícia Ribeiro, em 2009, que é uma das mais faladas até hoje. Foi final de campeonato e acho que perdi por uma vantagem. O behind the scenes que ninguém sabia e que ninguém precisava saber era que eu estava me separando. Um relacionamento de dez anos. Na noite anterior à final, eu nem dormi. Pensei em nem ir para a final, pois a minha cabeça estava a mil. O meu treinador era a pessoa da qual eu estava me separando. Por isso, eu não tinha treinador naquele momento. E a Letícia estava com uma torcida enorme, sabe? Então, eu consegui fazer uma das melhores lutas da minha vida. Queria ter ganho, com certeza. Mas, dentro das condições nas quais eu estava, tenho muito orgulho dessa luta. Foi pau a pau. Também, há um único título que eu não tenho o absoluto. Foi no Pan-Americano de kimono, acho que em 2008, com a Luka Dias. Ela fazia ponto, olhava para o placar e eu já tinha devolvido. Ainda tenho um pouquinho de ressentimento desse segundo lugar (risos).

Clara Jardim: O MMA evoluiu muito, e já inventaram muitos jeitos de se defender dos jiujiteiros (risos)…

Michelle Nicolini: Muitas vezes, as pessoas nem são tão boas de Jiu jitsu, mas elas têm um antijogo. Nos Estados Unidos, o nível do Grappling e do antijogo está sinistro, tanto no feminino quanto no masculino. O brasileiro ainda é soberano; é mais natural e mais bonito ver um brasileiro lutando Jiu Jitsu. Mas, vira e mexe, você vê um gringo finalizando, e eles são muito dedicados. Os gringos têm mais apoio e patrocínios, então, conseguem estar na academia 90% do tempo, focando neles, cuidando da preparação física e da alimentação. Estão em um nível profissional à frente da gente, porque o brasileiro está fazendo mil coisas para sobreviver e conseguir lutar. Vejo os brasileiros correndo atrás, mas precisam sobreviver. Acordam muito cedo, dão três aulas para conseguirem treinar no fim da manhã. Querendo ou não, o corpo cansa.

Clara Jardim: Na transição para o MMA, você enfrentou um desconforto quando se mudou para Singapura, onde passou dois anos. Eles puxavam a luta em pé para tirá-la da zona de conforto. E você saiu chorando do primeiro treino, tendo apanhado muito. Como foi o processo de se transformar no que você é hoje no MMA?
Michelle Nicolini:
Foi tão importante para o meu crescimento e desenvolvimento ter passado esses dois anos em uma escola tradicional de Muay Thai! Muitos campeões mundiais dando aula lá. Foi só assim que eu consegui sair do Jiu Jitsu. Se fosse de outra maneira, eu sempre iria continuar com o Jiu Jitsu, misturando-o com o Muay Thai. Lá, eu tive que praticar muito Muay Thai. Fiz uma semana de treinamento para saber se eu iria gostar e fui chamada. A proposta era boa, pois eu estaria em Singapura como atleta. Aqui, eu tinha os meus patrocínios, um lugar para treinar em Santos e tudo era organizadinho. Migrar para o MMA sem um contrato me dava medo. Mas deu tudo certo, pois eu tinha casa, treino e salário lá. Quando cheguei em Singapura, estava acontecendo um super treino de Muay Thai com todos os campeões e câmeras filmando. Essa menina, Angela (Lee), estava lá. Eu ainda não sabia nada de Muay Thai, pois não havia sido o meu foco até então, e ela veio muito forte. Isso quebrou a expectativa que eu tinha criado sobre ter uma menina para treinar e de que ela seria minha amiga. Foi tão violento que eu queria agarrá-la a todo instante em que ela me botava pressão. Mas, no Muay Thai, não pode agarrar se não for para fazer clinch. Não podemos usar quedas de Jiu Jitsu ou de Judô. Então, eles ficavam bravos, e ela vinha e batia mais. Não fiquei lesionada nem nada, mas chorei de frustração, pois eu criei expectativas que não existiam. Depois disso, entendi como ia ser. E foi assim durante todo o tempo em que eu morei lá. Fiz outras amigas. Já com a Angela, não tive amizade. Foi uma época muito boa, como um verdadeiro intercâmbio. E eu precisava passar por aquilo para mudar. Hoje, continuo treinando Jiu Jitsu, mas o MMA é o meu foco. Antigamente, não. Achava mais desafiador treinar Boxe e Muay Thai, então, acabava voltando para o Jiu Jitsu. A gente fica apegado à zona de conforto, mas é preciso sair. A evolução é muito grande, e a gente só ganha ao sair dessa zona de conforto.

Clara Jardim: Por fim, como é treinar com o Demian Maia?

Michelle Nicolini: Eu já havia treinado com o Demian antes, pois éramos da mesma equipe. Quando voltei de Singapura, vim ao Brasil passar as minhas férias e fui fazer um treino na escola dele. Um pessoal que eu já conhecia das antigas! E o Demian, sempre muito querido. Temos um grupo muito forte de MMA lá, e o Demian me mostra os atalhos. Me sinto privilegiada. Não preciso ficar testando as coisas, pois ele já testou tudo; sabe o que funciona e o que não funciona; pede a nossa opinião sobre a posição que ele está trabalhando com o time. O grande diferencial é aprender diretamente com ele, porque o Demian é uma inspiração; treina com todo mundo e treina todos os dias. É humilde, educado. Posso ficar falando por horas nas qualidades do Demian, porque é uma felicidade treinar e aprender com ele diariamente. E, quando o Demian não está presente, é alguém muito capacitado que puxa o treino. Não existe isso de o professor viajar e ficar uma bagunça. Na escola dele, é tudo certinho. Então, tenho muita admiração pelo Demian como pessoa, lutador e professor.